Quem conhece Júlio Varella sabe que ele jamais se meteria em uma briga, um confronto, um bate-boca. Doce, carinhoso com todos, sutil e manso, Julinho – como sempre foi chamado pelos amigos – prefere, via de regra, a diplomacia, o jeitinho, a recuada estratégica diante do perigo iminente de um escândalo ou de uma rusga que parta para as vias de fato. Lá pelos idos de 74 ou 75, véspera de carnaval, estávamos todos reunidos no Stage-Door, famoso bar do Teatro Marília, onde marcava encontro a ala de Beagá da Escola de Samba Qualquer Nome Serve, comandada por Jota Dangelo em São João Del Rey, e para onde íamos desfilar na avenida municipal. Todos nós, muito jovens, na faixa dos vinte e poucos anos, tesão saindo pelos poros, energia, vitalidade e começando a vida artística. Numa dessas reuniões da ala, que aqui era coordenada pelo Julinho e que também era o dono do Stage-Door, apareceram no bar uns três ou quatro sujeitos mal humorados, provocadores, desconhecidos dos habituais freqüentadores daquele local mágico e quase sagrado para os artistas da terra. E entre bebidas e insinuações, entre sambas e caipirinhas, o ambiente foi ficando tenso com provocações e gozações de um lado e respostas de outro. Até aí tudo ia bem, enquanto não passava de uma troca de “amabilidades” com alto teor etílico e respostas inteligentes e bem humoradas. Ao saírem do bar, nos primeiros degraus da escada que levava para baixo, para o foyer do teatro, os quatro marmanjos despejaram sobre todos uma série de palavrões e insultos difíceis de engolir a seco, quanto mais já molhados e bebidos como estávamos. E voamos escada abaixo atrás deles para defender a honra do nosso machismo enxovalhado e não passar por covardes diante das lindas mulheres que integravam a ala da escola. Era necessária uma resposta nossa diante da situação. Descemos uns oito ou nove de uma vez: José Maria Amorim, Maurício Terra, Maurício Preto, Charles Castro, Debré, Dangelo, José Flávio, eu e mais uns dois ou três de quem não me recordo agora. E entre gritos e empurrões iniciais ao pé da escada já estávamos preparados para as porradas quando ouvimos os gritos do Júlio Varella, do patamar da escada, completamente alterado, vermelho de raiva: “Parem! Parem com isso!” Fez-se uma fração de segundo de silencio e perplexidade diante da figura imponente de Julinho com um copo de whisky nas mãos. Ele se aproveitou desse nosso espanto momentâneo e emendou: “vou triturar vocês!” Novo impacto e ele de dedo em riste veio em nossa direção e emendou: “... com palavras!”. Não preciso dizer que foi uma gargalhada geral que desarmou o conflito iminente. Até os intrusos caíram no riso e Júlio Varella, dono da situação, convidou a todos para beberem o cachimbo da paz no andar de cima, coisa que foi imediatamente aceita pelas facções envolvidas na contenda que estava prestes a se transformar em luta corporal. Esse é o Júlio Varella que conheço desde os anos 60 quando iniciei minha carreira artística e, com esta narrativa, retirada de uma das gavetas da memória, inicio o depoimento sobre uma das figuras mais importantes na vida cultural de Belo Horizonte: Júlio Márcio Caldeira Varella ou simplesmente Julinho Varella. Em 1967 eu aportava pela primeira vez sobre o palco do Teatro Marília integrando o elenco e o coletivo de “Liderato, o Rato que era Líder”, o maior sucesso do teatro infanto-juvenil mineiro em todos os tempos. Escrito por André Carvalho e Gilberto Mansur, musicado por Aécio Flávio e dirigido por Helvécio Ferreira, “Liderato” ganhou sucesso e fama já na primeira temporada no Marília. Fazíamos duas sessões aos sábados, duas aos domingos e, na medida do possível, fazíamos quantas agüentássemos em dias de semana para escolas, instituições, empresas. Pode-se considerar esta peça, famosa e perseguida por falar mal dos militares, por ensinar as crianças a votar e desmistificar os falsos políticos de então na forma de ratos vendidos ao queijo estrangeiro, como um marco na produção de teatro infantil brasileiro. Político, ousado, musical e engraçado, “Liderato” atraía multidões por onde passasse. Também pode ser considerado o primeiro espetáculo profissional montado em Belo Horizonte. Éramos 14 pessoas reunidas em uma cooperativa que passamos a viver da bilheteria do espetáculo desde a sua estréia no Marilia. Como suporte, André Carvalho tinha a TV Itacolomi e o Estado de Minas dando total cobertura, veículos onde ele trabalhava como jornalista, apresentador, articulista e revisor. Naquele momento era das figuras mais importantes do jornalismo mineiro e pelo seu prestígio nesses veículos, tínhamos uma mídia quase diária falando do espetáculo. Foi com esse espetáculo que cheguei ao Marilia aos 17 anos e logo fiz amizade com Júlio Varella, o famoso diretor do teatro Marília. Eu já o conhecia por freqüentar o teatro em seus espetáculos e “chorar” as famosas cortesias para os artistas iniciantes que não tinham dinheiro para nada, muito menos para pagar ingressos nas temporadas que vinham do Rio e São Paulo trazendo os monstros sagrados do teatro brasileiro e que aqui ficavam um, dois e até três meses em cartaz naquela pequena casa de apenas 354 lugares. E Julinho nunca negava a nosso pedido para assistir qualquer coisa que ele julgasse importante na nossa formação. Graças à generosidade do Júlio, vi Fernanda Montenegro, Paulo Autran, Oduvaldo Vianna Filho, Tônia Carrero, Bibi Ferreira, Ziembinsky, Glauce Rocha, Cacilda Becker, Walmor Chagas, Plínio Marcos, Dercy Gonçalves, Paulo Gracindo, os inesquecíveis atores shakespereanos ingleses, Barbara Jefford e John Turner, o Teatro de Arena, o Oficina, Grupo Opinião... Vi também bailarinos e cias memoráveis de outros países que aqui chegavam: Rolf Gelewsky, Klauss e Angel Viana, Clyde Morgan, o Balé Folclórico da Bahia, Graciela Figueroa, Olodumaré, Oscar Arraiz, Alexander Filipov e Lúcia Tristão entre tantos outros. Os mímicos Rolf Scharre (alemão) e Milan Sladek (tcheco), dos quais fui aluno nos primeiros festivais de inverno e ainda o mais famoso mímico brasileiro: Ricardo Bandeira. Dalva de Oliveira, Eliana Pitmann, Milton Nascimento e o Som Imaginário, Vinicius de Moraes e Toquinho, Baden Powell, Gal Costa, MPB4, Clara Nunes, Maria Bethânia, foram alguns dos muitos shows que assisti ali. E ainda os espetáculos mineiros: Senhorita Júlia, com Priscila Freire e José Aurélio Vieira; “In Memoriam”, feito por Flávio Márcio, Ronaldo Brandão, Paulo Augusto de Lima, para homenagear Marilyn Monroe; “Numância”, com o Teatro Experimental, um dos mais belos e contundentes espetáculos montados em Minas; “Não, Poesia Para...” com o Teatro de Equipe; “Mulheres”, espetáculo de inauguração do Teatro Marilia, dirigido por Dulcina e que tinha no elenco atrizes do teatro e senhoras da sociedade mineira, “Vestido de Noiva”, dirigida por Haydée Bittencourt com a maravilhosa Neuza Rocha interpretando Madame Clecy; “A Comédia dos Erros”, impressionante espetáculo dirigido por Bárbara Heliodora com Napoleão Moniz Freire fazendo papel duplo e ainda “Mockinpott” com o Teatro de Arena de Porto Alegre, perseguido pela censura em todo o território nacional e aqui liberado sem cortes depois de uma luta intensa da classe teatral mineira com o chefe da censura local; “Seis Personagens à procura de um autor”, de Pirandello, dirigido por Haydée Bittencourt com Otávio Cardoso, Priscila Freire, Palmira Barbosa, dentre tantos outros atores maravilhosos da cena mineira; “A exceção e a Regra” espetáculo que veio da Bahia patrocinado pelo Goethe Institut na primeira gestão de Roland Schaffner á frente da instituição no Brasil e dirigido pelo hoje mineiro de coração, João das Neves; o impagável “O Inspetor Geral”, dos primeiros espetáculos do Asdrúbal trouxe o Trombone e para fechar esta parte da memória o inesquecível “Baal”, com José Mayer, Ezequias Marques, Ricardo Luiz, Fernando Pompom e um dos cenários mais criativos realizados por Raul Belém Machado além de uma bela e oportuna montagem de “Zumbi”, de Guarnieri, encenada pelo Tunis de São João Del Rey com direção de Luiz Dangelo. Ali também dirigi algumas peças importantes e que deram partida na minha carreira de encenador: as infantis “Romão e Julinha”; “Lúcia Elétrica”, “Bolota contra o Bruxo” e as adultas: “Auto da Compadecida”, “O Bravo Soldado Schweik”, “Frank Quinto” e com o Teatro Experimental fizemos “A Casa de Bernarda Alba”, “O Interrogatório”, “Oh! Oh! Oh! Minas Gerais” (na versão liberada pela censura em 1971) e “É”, comédia de Millôr Fernandes. Seria impossível lembrar todos os espetáculos que assisti no Marilia trazidos pelas mãos de Júlio Varella, como mais improvável ainda seria recordar todos os elencos que vi ou coloquei em cena. O Teatro Marilia fora construído na gestão do ex-ministro Clóvis Salgado à frente da Cruz Vermelha e tendo como diretora da entidade Dayse Prates Goulart de Faria, uma das mais sensíveis pessoas que conheci na minha vida. O nome Marilia foi dado em homenagem à filha de Clóvis Salgado. E o diretor e agitador, à frente daquela casa que se tornou o marco cultural da cidade, era Júlio Varella. O Marilia era o centro nevrálgico da cultura na cidade nos anos 60 e 70. Julio comandava o espetáculo ao lado de Sálvio de Oliveira, diretor da Galeria Guignard. No Stage-Door o piano de Lúcio Líbânio dava o tom sobre um pequeno palco onde quem quisesse se aventurar a soltar a voz podia chegar e cantar o que quisesse e até desafinar por alguns minutos que todo mundo aplaudia. Isso sempre acontecia depois dos espetáculos. Para lá convergiam não só os espectadores do teatro, mas escritores, jornalistas, artistas plásticos, músicos, a classe teatral em peso e tantas outras figuras ímpares que freqüentavam o local. Júlio Varella se transforma aos poucos no mais importante produtor cultural de Minas e um dos mais requisitados do Brasil. Ele liga as atividades do teatro com a galeria, lança espetáculos, recebe e hospeda companhias de teatro, promove lançamentos de livros e aos poucos se torna o produtor daquele que viria ser o mais importante coral brasileiro, o Ars Nova, regido pelo maestro Carlos Alberto Pinto Fonseca. Júlio morava no próprio teatro em um pequeno apartamento ao lado dos camarins. Isso porque muitos teatros brasileiros possuíam hospedagem para artistas e o Marília tinha cinco ou seis apartamentos em seus bastidores. Julinho ocupava um destes e ao fazer do teatro também a sua casa e seu escritório, tornou-se uma pessoa convergente no mundo cultural daqueles anos enlouquecidos pós-golpe de 64. Tudo acontecia no Marilia. Daí para que fosse convidado para ser o coordenador do Festival de Inverno de Ouro Preto, o mais importante que o Brasil já teve, foi apenas um passo e uma questão de competência, reconhecida pela UFMG. E Julinho se torna internacional, viaja, convida artistas-professores de todas as áreas, trava relacionamento com o mundo e o traz para Ouro Preto e Belo Horizonte. Espetáculos de todas as estéticas e nacionalidades se apresentavam no Marilia trazidos ou produzidos pelas mãos de Julio Varella. Belo Horizonte vivencia a experiência de se transformar em uma cidade culturalmente cosmopolita e de agregar em torno de Júlio, tendências políticas e estéticas tão diferentes quanto tangentes. O Marilia não parava: às segundas exposições e lançamentos de livros, de terça a domingo espetáculos e a noite fervilhava o Stage-Door ao som de um piano, um violão ou do atabaque de Mauricio Preto que puxava o samba até de manhã. O Marília era uma festa constante. Festa da arte, do encontro de pessoas, de longas e acaloradas discussões político-filosóficas e de grandes paixões que se tornaram perenes ou que apenas brilharam fugazmente nas noites sedutoras daquele local. Em tudo havia sempre a mão de Júlio Varella, direta ou indiretamente. Acho que nem ele próprio saberia perceber a importância que teve e tem até hoje na vida de muitas pessoas e grupos que incentivou, promoveu, produziu, empurrou. Na sua simplicidade, Júlio Varella foi o mais importante produtor cultural de Minas atuando nas artes cênicas, música, dança, literatura, artes plásticas com a ousadia e o pioneirismo nos anos 60, 70 e 80. Nunca ninguém o viu se vangloriar do poder que tinha e nem por uma fração de segundos arrebitar o nariz com arrogância ou prepotência. Nunca destratou ninguém e nem menosprezou qualquer artista, desde os que começavam a carreira aos grandes astros com quem sempre conviveu. Com seu jeito ameno de viver e trabalhar sem estresse é que fazia acontecer no palco das artes da cidade. Se alguém precisasse ou recorresse a ele com qualquer demanda, solicitação, fazia o que podia e o que não podia, nunca deixava sem uma solução, uma sugestão, uma porta aberta. Se não tinha uma data no teatro para uma produção local ou de fora, apertava daqui e de lá e a data acabava aparecendo em algum momento. Júlio é antes de tudo um humanista. Tem aquele olho clínico para perceber o talento, a garra, a sensibilidade, o desejo dos outros pela arte. Também sabe distinguir perfeitamente os aventureiros que se jogam no meio artístico tentando tirar algum proveito pessoal da aparente fragilidade dos artistas. Nesse momento, sabiamente, ele dá um jeitinho do cidadão sair de cena sem deixar vestígios. A ele devo muito da minha carreira por acreditar em meu potencial, em minha loucura, em me empurrar na direção correta, me recolocar nos trilhos quando eu ameaçava descarrilar. Dele partiu o convite para eu coordenasse o festival mirim de Ouro Preto em 1972, quando montamos todos os cursos sob a lona de um circo durante o Festival de Inverno. E eu era apenas um menino de 22 anos! Quando adquiri a Galeria Guignard em 1974 das mãos de Thalma de Oliveira e, definitivamente me instalei no Marilia ao lado de Julinho e ali fiquei até 1981, fizemos grandes parcerias em espetáculos, eventos, exposições e agitações em todas as áreas. Trabalhávamos de segunda a segunda, sem descansos, sem folga. Manhã, tarde, noite e madrugada, porque mesmo quando todos dormiam era no Stage-Door que ainda conversávamos, planejávamos, enlouquecíamos com idéias, projetos, sonhos. Ao longo de mais de 40 anos de convivência fraterna, eu e Julinho sempre estivemos em sintonia, mesmo que às vezes separados por alguma espécie de distância geográfica que o ritmo da vida nos impõe por excesso de trabalho ou falta de tempo. Mas acompanho com interesse cada passo da sua vida profissional e mesmo pessoal com Celme, companheira de todas as horas e Pedro, o filho do qual ambos se orgulham e admiram. Outro dia os vi dançando de rosto colado na calçada em frente a um bar em Tiradentes. Ele e Celme embalados pelo som do conjunto que tocava jazz e mpb da melhor qualidade e fiquei ali, parado, admirando o Julio Varella com a mesma energia e a alegria de viver que sempre teve. Juntei-me aos aplausos que receberam dos freqüentadores e transeuntes ao final da música e pensei comigo: “este é o Julinho, incorrigível bailarino da vida”.
Notícias do Curral del Rey Pedro Paulo Cava – 2009.
Texto para o livro de memórias de Julio Varella, escrito por José Carlos Aragão, a ser lançado em 18 dezembro de 2009.
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