segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

SISTEMA MUNDIAL: UM UNIVERSO EM EXPANSÃO

Sistema mundial: um universo em expansão
A publicação do livro, “O mito do colapso do poder americano”, no final de
2008, e em particular, a publicação do meu ensaio sobre “O sistema inter-estatal
capitalista, no início do século XXI”, incluído no livro, provocou muitas críticas que
contém em comum, a mesma dificuldade de entender o meu argumento sobre as
relações entre o poder, o capital e as guerras, dentro do sistema mundial. Meu artigo
parte de uma hipótese central sobre o movimento de longo prazo do “sistema interestatal
capitalista”, desde sua formação, na Europa, durante o “longo século XIII”, até
o início do século XXI. Uma hipótese que me permite compreender e diagnosticar a
conjuntura internacional que estamos vivendo, desde a década de 1970. Do meu
ponto de vista, é possível identificar, nesta longa duração da história do sistema
mundial, “quatro momentos em que ocorreu uma espécie de “explosão expansiva”,
dentro do próprio sistema. Nestes “momentos históricos”, houve primeiro um
aumento da “pressão competitiva” dentro do “universo”, e depois, uma grande
“explosão” ou alargamento das suas fronteiras internas e externas. O aumento da
“pressão competitiva” foi provocado – quase sempre - pelo expansionismo de uma ou
várias “potências” líderes, e envolveu também, um aumento do número, e da
intensidade do conflito, entre as outras unidades políticas e econômicas do sistema. E
a “explosão expansiva” que se seguiu, projetou o poder destas unidades ou
“potências” mais competitivas, para fora de si mesmas, ampliando as fronteiras do
próprio “universo”. A primeira vez que isto ocorreu, foi no “longo século XIII”, entre
1150 e 1350. O aumento da “pressão competitiva”, dentro da Europa, foi provocado
pelas invasões mongóis, pelo expansionismo das Cruzadas, e pela intensificação das
guerras “internas”, na península ibérica, no norte da França, e na Itália. E a “explosão
expansiva” que seguiu, se transformou numa espécie de “big bang” do “universo” de
que estamos falando, o momento do nascimento do primeiro sistema europeu de
“guerras e trocas”, com suas unidades territoriais soberanas e competitivas, cada uma
delas, com suas moedas e tributos. A segunda vez que isto ocorreu, foi no “longo
século XVI”, entre 1450 e 1650. O aumento da “pressão competitiva” foi provocado
pelo expansionismo do Império Otomano e do Império Habsburgo, e pelas guerras da
Espanha, com a França, com os Países Baixos e com a Inglaterra. É o momento em
que nascem os primeiros estados europeus, com suas economias nacionais, e com
uma capacidade bélica muito superior a das unidades soberanas, do período anterior.
Foi a “explosão expansiva” deste embrião do sistema inter-estatal europeu – para fora
da própria Europa - que deu origem ao “sistema mundial moderno”, liderado,
inicialmente, pelas potências ibéricas, e depois, pela Holanda, França e Inglaterra. A
terceira vez que isto ocorreu, foi no “longo século XIX”, entre 1790 e 1914. O
aumento da “pressão competitiva” foi provocado pelo expansionismo francês e inglês,
dentro e fora da Europa, pelo nascimento dos estados americanos, e pelo surgimento,
depois de 1860, de três potências políticas e econômicas - Estados Unidos, Alemanha
e Japão – que cresceram muito rapidamente, e revolucionaram a economia
capitalista, e o “núcleo central” das grandes potências. Logo em seguida, houve uma
terceira “explosão expansiva” que assumiu a forma de uma “corrida imperialista”
entre as grandes potências, que trouxe a África e a Ásia, para dentro das fronteiras
coloniais do “sistema mundial moderno”. Por fim, desde a década de 1970, está em
curso uma quarta “explosão expansiva” do sistema mundial. Nossa hipótese é que –
desta vez - o aumento da pressão dentro do sistema mundial, está sendo provocado,
pela estratégia expansionista e imperial dos Estados Unidos, depois dos anos 70, pela
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multiplicação dos estados soberanos do sistema, que já são cerca de 200, e,
finalmente, pelo crescimento vertiginoso do poder e da riqueza dos estados asiáticos,
e da China, muito em particular. (Fiori, 2008, p: 22 e 23)
Minha pesquisa sobre as relações entre a geopolítica e a geo-economia do
sistema mundial, começou há mais de 20 atrás, com o estudo da “crise dos 70” e a
“restauração liberal-conservadora” da década de 80, e seguiu com o
acompanhamento das transformações internacionais das décadas seguintes. A
impossibilidade de entender esta conjuntura a partir de si mesma me levou a uma
longa viagem no tempo, até as origens do “sistema inter-estatal capitalista”, para
conseguir entender suas tendências de longo prazo. Comecei pelas “guerras de
conquista” e pela “revolução comercial” que ocorreram na Europa nos séculos XII e
XIII, para chegar até à formação dos estados e das economias nacionais européias e o
início de sua vitoriosa expansão mundial, a partir do século XVI. Como é sabido, na
Europa, ao contrário do que aconteceu nos impérios asiáticos, a desintegração do
Império Romano e, depois, do Império de Carlos Magno provocou uma fragmentação
do poder territorial e um desaparecimento quase completo da moeda e da economia
de mercado entre os séculos IX e XI. Nos dois séculos seguintes, entretanto – entre
1150 e 1350 – aconteceu a grande revolução que mudou a história da Europa, e do
mundo: foi naquele período que se forjou no continente europeu, uma associação
indissolúvel e expansiva, entre a “necessidade da conquista”, e a “necessidade de
produzir excedentes” cada vez maiores, que se repetiu, da mesma forma, em várias
unidades territoriais soberanas e competitivas, que foram obrigadas a desenvolver
sistemas de tributação e criar suas próprias moedas, para financiar suas guerras de
conquista. As guerras e os tributos, as moedas e o comércio, existiram sempre, em
todo tempo e lugar, a grande novidade européia foi a forma em que se combinaram,
somaram e multiplicaram em conjunto, dentro de pequenos territórios altamente
competitivos, e em estado de permanente preparação para a guerra. Na Europa, a
preparação para a guerra, e as guerras propriamente ditas, se transformaram na
principal atividade de todos os seus príncipes, e a necessidade de financiamento
destas guerras, se transformou num multiplicador contínuo da dívida publica e dos
tributos. E, por derivação, num multiplicador do excedente e do comércio, e também,
do mercado de moedas e de títulos da dívida, produzindo e alimentando – dentro da
Europa - um circuito acumulativo absolutamente original, entre os processos de
acumulação do poder e da riqueza.
Não há como explicar o aparecimento desta necessidade européia da
acumulação do poder e do excedente produtivo, apenas a partir do “mercado
mundial” ou do “jogo das trocas”. Mesmo que os homens tivessem uma propensão
natural para trocar – como pensava Adam Smith – isso não implicaria
necessariamente que eles também tivessem uma propensão natural para acumular
lucro, riqueza e capital. Porque não existe nenhum fator intrínseco à troca e ao
mercado que explique a necessidade compulsiva de produzir e acumular excedentes.
Ou seja, a força expansiva que acelerou o crescimento dos mercados e produziu as
primeiras formas de acumulação capitalista não pode ter vindo do “jogo das trocas”,
ou do próprio mercado, nem veio, nesse primeiro momento, do assalariamento da
força de trabalho. Veio do mundo do poder e da conquista, do impulso gerado pela
“acumulação do poder”, mesmo no caso das grandes repúblicas mercantis italianas,
como Veneza e Gênova.
Agora bem, do meu ponto de vista, o conceito de poder político tem mais a
ver com a idéia de fluxo do que com a de estoque. O exercício do poder requer
instrumentos materiais e ideológicos, mas o essencial é que o poder é uma relação
social assimétrica indissolúvel, que só existe quando é exercido; e para ser exercido,
precisa se reproduzir e acumular constantemente. A “conquista”, como disse
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Maquiavel, é o ato fundador que instaura e acumula o poder, e ninguém pode
conquistar nada sem ter poder, e sem ter mais poder do que o que for conquistado.
Num mundo em que todos tivessem o mesmo poder, não haveria poder. Por isso, o
poder exerce uma “pressão competitiva” sobre si mesmo, e não existe nenhuma
relação social anterior ao próprio poder. Além disto, como a guerra é o instrumento
em ultima instancia da conquista e da acumulação do poder, ela se transformou num
elemento co-constitutivo deste sistema de poderes territoriais que nasceu na Europa,
e que depois se expandiu pelo mundo. Por isso, a origem histórica do capital e do
sistema capitalista europeu é indissociável do poder político e das guerras, e a teoria
sobre a formação deste “universo europeu” tem que começar pelo poder e pelas suas
guerras, pelos tributos e pelo excedente, e pela sua transformação em dinheiro e em
capital, sob a batuta do poder dos soberanos. O fator endógeno ou primeiro princípio
que move este universo é exatamente esta força da compulsão sistêmica e
competitiva que leva à acumulação sem fim do poder e do capital. E do meu ponto de
vista, o poder tem precedência lógica, dentro desta relação simbiótica, a despeito que
a acumulação de capital tenha adquirido uma “autonomia relativa” muito grande e
cada vez mais complexa, com o passar dos séculos.
Mais tarde, depois do “longo século XVI” e da formação na Europa dos seus
primeiros estados nacionais” se mantiveram estas mesmas regras e alianças
fundamentais, que haviam se estabelecido no período anterior. Com a diferença que,
no novo sistema de competição, as unidades envolvidas eram grandes territórios e
economias articulados num mesmo bloco nacional, e com as mesmas ambições
expansivas e imperialistas. O objetivo da conquista não era mais a destruição ou
ocupação territorial de outro Estado, poderia ser apenas a sua submissão econômica.
Mas a conquista e a monopolização de novas posições de poder político e econômico
seguiu sendo a mola propulsora do novo sistema. No novo sistema inter-estatal, a
produção do excedente e os capitais de cada país passaram a ser uma condição
indispensável de seu poder internacional. E foi dentro dessas unidades territoriais
expansivas que se forjou o “regime de produção capitalista”, que se internacionalizou
de mãos dadas com estes novos impérios globais criados pela conquista destes
primeiros estados europeus. E depois do século XVI, foram sempre estes estados
expansivos e ganhadores que também lideraram a acumulação de capital, em escala
mundial. Alem disto, a chamada “moeda internacional” sempre foi a moeda destes
estados e destas economias nacionais mais poderosas, transformando-se num dos
principais instrumentos estratégicos, na luta pelo poder global.
A expansão competitiva dos “Estados-economias nacionais” europeus criou
impérios coloniais e internacionalizou a economia capitalista, mas nem os impérios,
nem o capital internacional eliminaram os Estados e as economias nacionais. Neste
novo sistema inter-estatal, os Estados que se expandiam e conquistavam ou
submetiam novos territórios também expandiam seu território monetário e
internacionalizavam seus capitais. Mas, ao mesmo tempo, seus capitais só puderam
se internacionalizar na medida em que mantiveram seu vínculo com alguma moeda
nacional, a sua própria ou a de um Estado nacional mais poderoso. Por isso, se pode
dizer que a globalização econômica sempre existiu e nunca foi uma obra do “capital
em geral”, nem levará jamais ao fim das economias nacionais. Porque de fato, a
própria globalização é o resultado da expansão vitoriosa dos “Estados-economias
nacionais” que conseguiram impor seu poder de comando sobre um território
econômico supranacional cada vez mais amplo, junto com sua moeda, sua dívida
pública, seu sistema de crédito, seu capital financeiro e suas várias formas indiretas
de tributação.
Da mesma forma, do meu ponto de vista, qualquer forma de “governo
mundial” é sempre uma expressão do poder da potência, ou das potências que
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lideram o sistema inter-estatal capitalista. Muitos autores falam em “hegemonia” para
referir-se à função estabilizadora desse líder dentro do núcleo central do sistema. Mas
esses autores não percebem – em geral - que a existência dessa liderança ou
hegemonia não interrompe o expansionismo dos demais Estados, nem muito menos,
o expansionismo do próprio líder ou hegemon. Por isso, toda potencia hegemônica é
sempre, ao mesmo tempo, é auto-destrutiva, porque o próprio hegemon acaba
desrespeitando as regras e instituições que ajudou a criar para poder seguir
acumulando seu próprio poder, como se pode ver no caso americano, depois do fim
da Guerra Fria. Donde, é logicamente impossível que algum país “hegemônico” possa
estabilizar o sistema mundial, como pensam vários analistas internacionais. Neste
universo em expansão que nasceu na Europa, durante o “longo século XIII”, nunca
houve nem haverá “paz perpétua”, nem sistema políticos internacionais estáveis.
Porque se trata de um “universo” que precisa da preparação para guerra e das crises
para poder se ordenar e “estabilizar”. E através da história, foram quase sempre estas
guerras e estas crises que abriram os caminhos da inovação e do “progresso”, na
história deste sistema inventado pelos europeus.
É nesta visão do sistema mundial e não apenas em opiniões e vaticínios, que
se funda a minha avaliação sobre o “mito do colapso americano”. A mesma visão que
me autoriza pensar que os fracassos político-militares norte-americanos do início do
século XXI, e a atual crise econômica mundial não apontam para o fim do “regime de
produção capitalista”, nem para uma “sucessão chinesa” na liderança mundial que
deverá seguir nas mãos dos Estados Unidos. O que não quer dizer obviamente que
esta liderança americana seja definitiva, ou que o sistema mundial não esteja vivendo
uma transformação gigantesca. Como já disse no livro e no início deste artigo: do
meu ponto te vista, está em curso uma grande “explosão expansiva” do sistema interestatal
capitalista, e uma nova “corrida imperialista” entre as grandes potencias, que
deverá se intensificar nos próximos anos. Mas este não é um mundo “sombrio”, com
pensam alguns Críticos, é apenas o mundo em que nascemos
.

José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e editor do
livro "O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações” (Editora Boitempo, 2007).
Escreve mensalmente, às quartas-feiras, no jornal Valor Econômico. Este texto foi
publicado no dia 2 de setembro de 2009.

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