
Por mais de 29 anos, o nome do delegado batizou a pacata via com duas quadras residenciais no bairro Vila Marina, perto da movimentada rodovia Washington Luís e da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Era como se o sarcasmo e a crueldade característicos do personagem estivessem ali reproduzidos, perturbando nos mapas a consciência de quem tenta construir uma sociedade mais justa e livre. Era como se o desrespeito e o desprezo ao sofrimento dos torturados se perpetuassem.
A pacata rua de São Carlos teve o nome do delegado torturador por quase trinta anos.
A rua tem somente dois quarteirões e abriga muitos alunos da UFSCar.
Era assim por causa de um decreto assinado em 15 de maio de 1980 pelo então prefeito de São Carlos, Antonio Massei. Até então a rua levava o nome de travessa G. O entorno era pouco ocupado, mas a referência da região já era a delegacia erguida ali ao lado, na rua Santos Dumont, da qual sai a via em questão.
Massei foi uma figura histórica da política local. Teve três mandatos como prefeito da cidade – o primeiro ainda na década de 50.
Segundo o presidente da Câmara Municipal de São Carlos, Lineu Navarro (PT), autor do projeto que retirou o nome de Fleury, Massei sempre foi eleito com o apoio das camadas populares do município e não tinha vínculos com o movimento de repressão à oposição durante a ditadura. Lineu e moradores da rua atribuem a decisão de Massei de homenagear Fleury à influência de policiais que atuavam na delegacia vizinha. O batismo da rua foi determinado sem consulta aos vereadores da época.
Naquele mês, completava-se um ano da morte de Fleury. O delegado teria se afogado no mar de Ilhabela, no litoral norte de São Paulo, ao lado de um iate recém-comprado, no dia primeiro de maio de 1979. O caso ganhou ar de mistério por causa do passado de Fleury e pelo fato de a polícia paulista não ter permitido a autópsia do corpo.
Símbolo da repressão e da tortura
Fleury era policial civil em São Paulo no fim da década de 60 – chefiava a Delegacia de Roubos - quando se tornou figura central dos órgãos de repressão aos opositores do regime militar. Iniciada em 1964 com o golpe que derrubou o presidente João Goulart, a ditadura entrava em sua fase mais violenta em dezembro de 1968 com a edição do Ato Institucional nº 5. O AI-5, que vigorou por dez anos, restringia as atividades do Congresso Nacional e os direitos civis
(clique aqui para saber mais sobre o AI-5).
O delegado era acusado de liderar o Esquadrão da Morte, grupo clandestino de policiais responsável por execuções e suspeito de envolvimento com esquemas de corrupção e outros crimes. Com esse histórico, Fleury chegou ao comando do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e da Operação Bandeirante (Oban), integrada por policiais civis, militares, federais e representantes das Forças Armadas. O objetivo da Oban, que contava com o apoio financeiro de empresários, era intensificar o combate aos opositores. Fleury passou, então, a ser um símbolo da repressão e uma das figuras mais temidas do país.
Nos porões da ditadura, à sombra da censura imposta à imprensa, ele comandou a prisão e a tortura de presos políticos. Baseado em São Paulo, participou pessoalmente de ações de cerco e de sessões de tortura aos opositores da ditadura. O repertório da tortura ia de choques elétricos a queimaduras, de espancamentos em pau-de-arara a estupros. A intenção era aniquilar os grupos que tentavam se organizar clandestinamente para enfrentar a ditadura e intimidar qualquer movimento de oposição ao regime.
A repressão desencadeada pela ditadura resultou em centenas de mortes e desaparecimentos, sem contar as sequelas físicas e psicológicas provocadas pelas prisões e torturas. Em 1969, com a ajuda do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), Fleury armou uma emboscada na zona sul de São Paulo para matar a tiros Carlos Marighella, líder da ALN (Aliança Libertadora Nacional), uma das organizações que se valeu da luta armada para combater o regime.
Ações como esta deram a Fleury grande prestígio na cúpula militar
(saiba mais sobre a tortura durante o regime militar e a atuação de Sérgio Fleury).
Em 1973, o governo criou uma regra para dificultar a punição de agentes como o delegado torturador. Réus primários ganharam o direito de esperar o julgamento em liberdade. A norma ficou conhecida como Lei Fleury.
Que nome dar à rua?
Entre os moradores da rua que levava o nome do delegado, essa história não é tão bem conhecida. São Carlos nunca esteve no centro dos enfrentamentos políticos do país. Além disso, não há registro de ligações de Fleury com a cidade, o que reforça o espanto diante da descabida homenagem ao torturador.
"Entendo que se dá nome às ruas como forma de homenagear pessoas que tenham feito benefícios para a cidade, o país e o mundo. Não cabe uma homenagem a uma pessoa que torturava. Fleury era um sanguinário. Essa é uma situação que incomodava a gente faz tempo. São Carlos não tem nada a ver com ele. Homenagear uma pessoa desse naipe é inconcebível", afirma Lineu Navarro, presidente da Câmara Municipal.
O presidente da Câmara Municipal de São Carlos, Lineu Navarro, autor do projeto que mudou o nome da rua.
Na família mais antiga da rua, a mudança provocou alguma controvérsia. Os filhos de Orlanda Marques Ferreira, de 82 anos, comandam o Bar e Mercearia São João. Luiz Roberto questionou a troca do nome e ficou preocupado com a regularização dos documentos dos imóveis. Em contrapartida, o irmão Ismael mobilizou-se para impulsionar a mudança. Foi de porta em porta explicar a situação e esclarecer que não haveria transtornos para os moradores. "Conheço esse passado do Sergio Fleury e ficava indignado com o nome em homenagem ao torturador."
O apoio popular foi imprescindível para a mudança. Uma lei municipal proíbe a troca dos nomes de ruas em São Carlos. A alteração só acontece se a maioria dos moradores aprova a iniciativa. E assim aconteceu na rua da Vila Marina. "Alguns anos atrás, a discussão não prosperava no plenário da Câmara. No ano passado, voltamos à carga com essa discussão, mas tivemos problemas no encaminhamento do nome que seria colocado na rua. Neste ano, nós chegamos a um consenso com os moradores sobre que nome colocar. Coletamos as assinaturas de forma rápida, e o projeto de lei também passou pela Câmara de forma rápida", relata Lineu. Os vereadores aprovaram a proposta por unanimidade, e o projeto virou lei com a assinatura do prefeito Oswaldo Barba.
O nome de Dom Hélder Câmara foi escolhido a dedo para fazer um contraponto a Sergio Fleury. No fim dos anos 60, como arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder expressou apoio à ação católica operária e acabou punido pelo regime militar. Ficou proibido de se expressar nos veículos de comunicação brasileiros de 1970 a 1977.
Conhecido pela defesa dos direitos humanos e da justiça social, ele apoiou os perseguidos pela ditadura e denunciou no exterior as torturas cometidas no Brasil. O arcebispo e seus colaboradores sofreram atentados. No início dos anos 70, o regime militar chegou a fazer campanha contra a indicação do nome dele para o Prêmio Nobel da Paz. Não faltaram, no entanto, prêmios que reconhecessem a dedicação do religioso
(saiba mais sobre a trajetória de Dom Hélder).
O ano de 2009 marcou os dez anos da morte e o centenário do nascimento de Dom Hélder.
A tentativa de retirar o nome de Sergio Fleury também mobilizou muita gente de fora da cidade e organizações como o Tortura Nunca Mais. Caio Navarro de Toledo, professor de Ciência Política da Unicamp e pai de uma aluna de Ciências Sociais da UFSCar, promoveu uma corrente via internet para reunir apoio à mudança. "Fleury teve apoio direto de ditadores e de empresários brasileiros. Ganhou notoriedade e era assumidamente cruel. Torturava e debochava do torturado. Os nomes das ruas expressam a história e os ideais de uma sociedade. A mudança é um ato extremamente simbólico. Com a homenagem a dom Hélder Câmara, São Carlos opta pela liberdade, a paz e a vida e diz 'não' à mentira, à tortura e à violência."
Caim, Pinochet, Hitler
A mudança do nome da rua teve uma cerimônia com a presença do ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência. E partiu dele a declaração mais enfática a respeito do delegado: "Fleury foi um torturador emblemático. Centenas de testemunhas dizem que foram torturadas por ele. Comparo-o a Caim, a Pinochet e a Hitler. Não pode haver uma rua com esse nome".
São Carlos agora celebra a resistência pacífica de Dom Hélder Câmara.
A iniciativa de São Carlos acontece exatamente em um ano em que ganhou força a discussão a respeito da abertura dos arquivos e do direito à verdade sobre o que aconteceu no país durante a ditadura
Outro ponto desse debate é a tentativa de acabar com a anistia aos torturadores
(confira o manifesto contra a anistia elaborado pela Associação dos Juízes para a Democracia).
Nesse movimento, o Brasil está atrasado em relação a países como Argentina e Chile, onde avançam as punições aos crimes praticados nas ditaduras.
Como diz o vereador Lineu Navarro, a página da ditadura na história do Brasil ainda não foi virada."Não será enquanto a história do regime militar não for revelada e resolvida". E como diz o professor Caio de Toledo, a troca de um nome em uma placa não muda de imediato a vida das pessoas, mas no caso de São Carlos representa a opção por valores mais dignos. A história é feita e refeita todos os dias, de todos os lados.
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