Minha família já esperava por eles, “os cachorros loucos”. Mas esperava sem acreditar. Boatos aqui e ali diziam dos Goldberg da rua 14, dos Meyer do bairro de baixo. “Mas, afinal, — dizia meu pai — estamos em guerra! Pessoas somem!”.
Não tínhamos recursos ou jóias de família que custeassem a viagem que muitos vinham arriscando, rumo à América. Viagem cara e ilegal, os países americanos eram inimigos, então, primeiro sair da Alemanha por terra, etc, etc. Tinha ouvido trechos da conversa no dia em que o rabino veio nos visitar.
Quando o rabino saiu, papai me mostrou, no sótão, uma folha solta do forro, “Não há de ser nada, mas estão todos falando… Qualquer coisa estranha, se os “cachorros” aparecerem, esconda-se aqui. Só saia quando tudo estiver em silêncio.
Poucas semanas depois, as batidas na porta.
Mamãe me levou ao sótão, papai foi abrir a porta.
De entre as telhas e o forro, podia ouvir seus latidos ferozes, — raus! — os gritos de meu pai, o desespero de minha mãe.
Dois deles entraram no sótão.
— Já devem ter mandado a vadiazinha embora.
— É uma pena…
— Sim, dezesseis anos! Está pensando o mesmo que eu?
Desceram as escadas do inferno rindo.
Os risos ecoaram por muito tempo mesmo depois que os gritos calaram.
Esperei o silêncio.
Quando fui procurar Gustaff, tive medo, ele era um deles, e atendeu a porta com seu uniforme. Mas me trouxe um espelho para eu ver, “as lágrimas e o pó lhe deixam estranhamente bonita”.
Amanhecia. Não vi nada.
NOITE
(de Memórias de Patty Flag)
Saí da Alemanha brigada com as noites. No mar não foram outra coisa que dias escurecidos. Por elas eu passei como trespassei os dias, chorando.
Depois de duas semanas de navio, desembarcara há poucas horas no Rio de Janeiro. Vagara pela orla arrastando a mala de roupas até o entardecer.
Eu estava em Copacabana quando ela chegou e se sentou ao meu lado, muda, talvez pensando que eu não notasse.
De algum jardim uma dama da noite exalava seu perfume peculiar e a magia e a demência da noite se infiltravam em mim. Eu lembrava, mas o calor da brisa desorientava meus sentidos e esqueci de chorar.
A noite cega, a noite romântica, a noite crua, a noite mascarada. A noite pão e a noite morte, todas as noites naquele instante.
Os homens passavam com seus automóveis pretos e diziam coisas que eu ainda não entendia. Entrei naquele Cadilac apenas porque era vermelho.
O cheiro dos lençóis do hotel, o cheiro da goma dos cabelos do homem que ia e vinha em cima de mim, gemendo. Concentrei-me em seus cabelos que não se mexiam.
Não era a minha primeira vez, mas ainda doía.
Algo que eu não poderia supor quando Gustaff, poucos meses antes, acariciara meus seios por cima da roupa. Então eu acreditara que era uma mágica, um truque que os homens faziam para arrancar nossos corações pela boca.
Depois, com os oficiais que negociaram com ele esses favores em troca de minha viagem, até este homem e mais alguns, sempre doeu. Habituei-me.
Dormi algumas horas no hotel que o cavalheiro deixou pago. Recolhi os tostões jogados no criado mudo, e saí desabalada antes que se acabasse a noite.
Ainda na calçada, respirei fundo o ar gelado e úmido da madrugada. Uma, duas, três vezes. E vi um sorriso escapar pela primeira vez desde que a SS arrancou meus pais da cama no meio da noite.
Patty Flag é pseudônimo de Gertrude Patricia Fahne, nascida nos subúrbios de Berlim em 1926. Tinha dezesseis anos quando sua família foi levada para os campos de concentração. Com ajuda do namorado nazista, fugiu sozinha para o Rio de Janeiro. Nunca mais se viram, não trouxe um níquel, não falava português. Dir-se-ia que sua vida começou de novo, mas a vida nunca recomeça do zero. Em todas as células de seu corpo de ex-judia, ex-prostituta barata, ex-musa do teatro de revista, ex-dona-de-casa exemplar, ex-evangélica fervorosa, em cada linha dos doces romances baratos que escreve para sobreviver, dormita jungfrau Trudi, a romântica adolescente que tinha a vida pela frente.
Postado por Luis Favre
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