quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

OS ARQUIVOS DO MAL

A Argentina sempre nos antecedeu em termos políticos. Os argentinos conquistaram a independência em 1810, nós em 1822.

Tentaram a democracia republicana antes de nós e, nela, tiveram caudilhos e mandões antes de nós. Precoces, viveram sob ditaduras antes de nós.

Após os anos 1960-80 (em que o militarismo de direita vicejou no continente sob auspício e proteção de Washington), o triunfo de Raul Alfonsín na eleição presidencial de 1983 fez a Argentina aparecer à frente da onda de redemocratização da América Latina.


Aqui, só em 1986 tivemos governo civil e, mesmo assim, sob as injunções da eleição indireta.

Até a organização social e urbana lá começou antes.

No século 19, Córdoba fez a reforma universitária e instituiu o ensino público.

Buenos Aires já era metrópole madura, com trem subterrâneo e telefones, cem anos atrás, quando Rio e São Paulo eram apenas imensas aldeias.

Agora, a Argentina abriu oficialmente os arquivos das Forças Armadas e policiais durante os anos da ditadura militar concluída em 1983.

Enquanto, no Brasil, o governo nos condena a desconhecer a História e ignorar a verdade dos 21 anos ditatoriais, na Argentina tudo se abre ao público pela terceira vez.

Em 1985, no julgamento dos generais, almirantes e brigadeiros das Juntas Militares, 2 mil testemunhas (dos sobreviventes aos carrascos) reconstituíram o horror dos campos de extermínio, onde "desapareceram" 25 mil presos políticos.

Assisti como jornalista a todas as audiências do juízo, que levou o general Jorge Videla e o almirante Emílio Massera à prisão perpétua, com penas menores a outros três oficiais.

Esse arquivo vivo tornou presente o horror pela primeira vez.

Depois, em 1995, o general Martín Balza, comandante do Exército, em pronunciamento pela TV, pediu "perdão à nação" pelos sequestros, prisões, torturas e assassinatos cometidos pelos militares. E, ainda, pelo golpe militar que depôs a presidenta Isabelita Perón. Dias após, os comandantes da Marinha e Aeronáutica o imitaram, para surpresa do presidente Menem, que de nada sabia.

Abria-se à História a segunda janela: o passado surgiu como deformação nojenta e cruel, a não repetir-se jamais.

Tal qual na Alemanha (onde descobrir e julgar algozes nazistas busca, até hoje, erradicar o vírus ditatorial), na Argentina a abertura oficial dos arquivos militares tenta completar o ciclo de maturidade.

Esta terceira janela pública do horror talvez não traga nada inédito. Na repressão argentina, tudo foi clandestino e duvido que os militares tenham documentado o terror do extermínio, dos milhares de corpos cremados nos fornos da Escola de Mecânica da Armada, em Buenos Aires, ou em La Perla, em Córdoba. Ou dos presos (alguns vivos e sob sedativo, outros mortos) atirados de aviões em alto-mar. O terror não se documenta. O autor sabe que é crime vergonhoso e o esconde.

Morei 18 anos na Argentina, presenciei o caos dos últimos 18 meses de Isabelita Perón e os dois primeiros anos da ditadura da Junta Militar.

Vivi sob o terrorismo de Estado, que atuava escondido, sem a mínima formalidade.

Isto os diferencia da nossa ditadura, mais longa mas menos cruel, sempre guardando ou simulando formalidades, permitindo discursos nos parlamentos sobre "o alto preço do chuchu", enquanto isso não alterasse os porões da tortura aos presos políticos. Não há, porém, "torturômetro" e o crime, crime é. Não se mede em toneladas, como soja.
Se lá foi mais brutal, isso não nos exime de conhecer, aqui, o terror dos "menos brutais" e nossos benignos arquivos do mal.

Por Flávio Tavares
Jornalista e escritor

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