quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

ZILDA ARNS E O SORO CASEIRO QUE SALVOU MILHARES DE CRIANÇAS

Médica pediatra sistematizou ações básicas de saúde responsáveis em reduzir a mortalidade infantil

SÃO PAULO - Se os homens fecham as janelas, Deus abre uma porta - assim pensou a médica Zilda Arns Neumann, depois de conversar com o cardeal d. Paulo Evaristo Arns, um de seus 12 irmãos, que lhe telefonara para perguntar se aceitava empreender uma obra capaz de salvar milhões de crianças. Pediatra e sanitarista, viúva e mãe de cinco filhos, ela estava encostada atrás de uma mesa da burocracia da Secretaria de Saúde do Paraná, após 23 anos de trabalho - os últimos 13 como diretora de Saúde Materno - Infantil do Estado, em Curitiba. Coisas da política, numa hora de mudança de governo, punição para uma funcionária dedicada que não tinha ideologia nem filiação partidária.

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D. Paulo, então arcebispo de São Paulo, ligou para dar um recado do secretário-executivo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), James Grant, com quem acabara de se encontrar em Genebra, na Suíça. "Por que a Igreja Católica, que tem tanta influência nas camadas mais pobres da população, não faz uma campanha contra a desnutrição?", propôs Grant, dispondo-se a financiar a obra, se Dom Paulo quisesse começar por sua arquidiocese. O cardeal argumentou que não teria tempo para tal empreitada, mas sugeriu o nome da Dra. Zilda.

"Tenho uma irmã que é especialista na área e pode fazer isso", respondeu o cardeal e imediatamente levou a proposta adiante. "Não tenho grande mérito, a não ser o de aceitar a ideia", disse d. Paulo 20 anos depois, como se sua participação tivesse parado aí. Não parou. Foi ele também quem indicou o nome do então arcebispo de Londrina, d. Geraldo Majella Agnelo, para ajudar na organização de um projeto para reduzir a mortalidade infantil que se transformaria no ano seguinte, setembro de 1983, na Pastoral da Criança. Foi um trabalho árduo que a Dra. Zilda iniciou em casa, numa noite de vigília e oração.

Começou conversando com os filhos na cozinha, onde se reunia com eles antes de irem dormir, para tomar uma vitamina e contar as coisas do dia. "Dom Paulo me telefonou e a mãe vai preparar hoje à noite um projeto que vai salvar milhões de crianças no Brasil e no mundo", disse a Dra. Zilda, explicando o que pretendia fazer. Tomou um café preto para espantar o sono, pediu que Deus a ajudasse - "Vinde, Espírito Santo, enchei os corações de vossos fiéis" - e se pôs a meditar sobre aquele trecho do Evangelho que narra o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes. "Se Jesus mandou que seus discípulos dessem de comer, eles mesmos, ao povo que estava com fome, achei que, em vez de ficar dependendo do governo, nossas famílias deviam se organizar para cuidar de seus filhos."

A experiência que a pediatra e sanitarista havia acumulado na assistência à população carente do Paraná valeu muito nessa hora. A Dra. Zilda achou que poderia construir seu projeto em cima das cinco ações básicas de saúde que, ela sabia, eram responsáveis pela redução da mortalidade infantil. Essas cinco ações são a saúde da gestante, o aleitamento materno, a vacinação, o soro caseiro e o controle do peso. Bem de acordo com o que queria o Unicef, pois James Grant estava entusiasmado com a eficácia do soro caseiro - duas medidas de açúcar e uma de sal, misturadas num copo d'água - que estava salvando milhares de crianças desnutridas em Bangladesh, um dos países mais pobres do mundo. O segredo de tudo seria a solidariedade, o trabalho comunitário, envolvendo povo, governo e igrejas num esforço comum.

"Se a gente mapear as comunidades e descobrir lideranças que pudessem ser preparadas para trabalhar nas ações básicas, sem gastar dinheiro, para fazer bem aos vizinhos, em pouco tempo elas se multiplicariam, de família em família, num exército de voluntários", assim pensou a Dra. Zilda, em sua noite de vigília. Tudo no espírito da fraternidade cristã, sem interesse político ou qualquer tipo de discriminação, abrindo-se as portas para quem quisesse participar. Os colaboradores voluntários trabalhariam com a orientação de coordenadores, que lhes ensinariam o que é reidratação oral e a importância do aleitamento materno, mostrando que o soro caseiro é um santo remédio para diarreia e que muitos bebês se salvariam, em vez de morrerem antes de três a cinco meses de idade, só pelo fato de mamar no peito.

Florestópolis

Escolheu-se então o município de Florestópolis - 14.700 habitantes, 73% deles trabalhadores bóias-frias - para a implantação do projeto. Situado a 80 quilômetros de Londrina, arquidiocese de d. Geraldo Agnelo, que poderia acompanhar tudo de perto, era o campo ideal. Foi uma escolha acertada, pois em pouco tempo a mortalidade infantil de Florestópolis, que era de 127 por mil, baixou para 28 por mil. O diretor do Unicef em Brasília, o indiano Jabole Mathai, ficou impressionado com o resultado. Mandou um observador, o médico peruano Heron Lechtig, checar como havia acontecido o milagre e prometeu recursos para levar a obra adiante. A ajuda vinha na hora certa, pois se lutava com muita dificuldade, a Dra. Zilda viajando de ônibus ou pegando carona, entre Curitiba e o interior, para montar o projeto.

"Florestópolis era o fim do mundo, tinha o maior índice de mortalidade infantil do Estado e vivia sob a influência de uma usina de açúcar de Porecatu que pagava os bóias-frias com vales que eles tinham de gastar no mercado da fazenda, comprando coisas de que não precisavam", lembra d. Geraldo Agnelo, atualmente cardeal-primaz de Salvador e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). "Os fazendeiros não queriam que o bispo fosse fazer crismas em suas terras, propunham que as crianças fossem levadas à sede do município". d. Geraldo ia assim mesmo, ainda que estivesse chovendo e tivesse de caminhar a pé. Florestópolis nem padre tinha, era uma freira, Irmã Eugênia Piettà, quem dirigia a paróquia.

A participação de Irmã Eugênia foi providencial. Ela entrou de repente na sala, sem que ninguém a esperasse, quando a Dra. Zilda estava discutindo o projeto com d. Geraldo em Londrina, ainda sem saber como mobilizar o povo de Florestópolis. Ficou encantada com a ideia e saiu com o compromisso de convidar umas 20 pessoas, os futuros líderes, para uma reunião marcada para uma tarde de sábado. d. Geraldo celebraria uma missa na Matriz de São João Batista, a Dra. Zilda explicaria o que se pretendia fazer. A igreja lotou. Quando a médica perguntou quem queria que o projeto fosse para frente, todo mundo levantou o braço. Decidiu-se então dividir o município em comunidades por quarteirão e ver quem poderia visitar as famílias, casa por casa, para o planejamento inicial. A ideia era descobrir onde havia gestantes e crianças de até seis anos, anotar o endereço e escolher os voluntários que pudessem começar o trabalho.

Cruzes brancas

"Tem política? Se não tem, estou dentro", entusiasmou-se o professor Romeu Edson Paulino, diretor do colégio da cidade, disposto a colaborar, ele e sua mulher Idalina, na guerra contra a mortalidade infantil. "Sofremos muito aqui - eu, Irmã Eugênia e Irmã Ana Maria - porque os fazendeiros nos proibiam de entrar em suas terras, imaginando que fôssemos de algum movimento subversivo", lembra o professor. Fizeram um levantamento das doenças e publicaram fotos do cemitério, onde dezenas de cruzes brancas marcavam a área em que as crianças eram sepultadas, uma prova de que a mortalidade infantil era grande. O governador José Richa foi a Florestópolis por causa desse "escândalo", prometeu um desconto na conta de água para as 130 hortas comunitárias que o projeto estava construindo, mas não deu nada.

Eunice Vicente Cardoso, que participou da primeira reunião com a Dra. Zilda, disse que a cidade parou uma semana para o treinamento dos líderes. "Houve muita dificuldade, pois o povo não aceitou bem no começo, porque a gente perguntava sobre os hábitos da família, salário e renda, parecendo indiscrição", disse a futura coordenadora do Setor São José, onde ela pesava as crianças debaixo de uma árvore na Rua do Meio. Era assim: os voluntários instalavam balanças em galhos de árvores nos quintais e ali promoviam encontros para ensinar as mães a cuidar de seus filhos. "Não era fácil, porque queriam alguma coisa em troca", contou a assistente social Maria Alexandrina Vargas Scalassara, outra pioneira, de Londrina, que também participou da primeira reunião. Os bóias-frias dependiam de ajuda, pois eram mão-de-obra que só tinham serviço durante a safra, seis meses por ano.

Quando a Dra. Zilda voltou a Florestópolis, um mês após o lançamento do projeto, os líderes já eram 76, quase todos funcionários públicos, principalmente professoras. "Era muita gente, mas não dispensei ninguém, para não desanimar", disse a fundadora da Pastoral da Criança, que então dividiu os voluntários em cinco grupos, cada um encarregado de uma ação básica. Com a ajuda de técnicos da Secretaria da Saúde, a pediatra e sanitarista distribuiu apostilas para orientação dos primeiros coordenadores, que se reuniram na creche das irmãs Eugênia e Ana Maria.

"Nossa cidadezinha deu exemplo de garra e de força, mostrando que o povo se une nas horas difíceis", observou Eunice, entusiasmada com os frutos colhidos no trabalho comunitário. "As pessoas aprenderam a administrar a casa e eu, que era do lar, me abri para outros cursos, me beneficiei com palestras, fui funcionária da Associação de Pais e Amigos do Excepcional (Apae) e agora, já avó, estou estudando magistério".

Prego na panela

Como coordenadora de setor, Eunice convidou outras mulheres, entre elas a professora Neuza Souza Carnelossi, que havia participado da primeira reunião e trabalhou dez anos na Pastoral da Criança. "Não amamentei meus dois primeiros filhos, mas a pastoral salvou Mariana, que nasceu depois e não aumentava de peso, porque tinha problema de refluxo urinário." Neuza deixou a Pastoral da Criança, mas continua com outras atividades da paróquia, como evangelizadora e ministra da Eucaristia.

Ela e o marido, Walter Carnelossi, ajudavam trabalhando em casa, fazendo mistura de casca de ovo, folha de mandioca, farelo de arroz, farinha de trigo, pó de semente e soja, para reforçar a dieta de crianças desnutridas. Mães gestantes com anemia tomavam sopa cozinhada com um prego enferrujado na panela - uma maneira de garantir o ferro que faltava no sangue. Walter aprendeu a fazer leite de soja e mais tarde ajudou a produzir leite, farinha e sopa com a vaca mecânica que Florestópolis recebeu para o projeto.

"Comi muita farinha com farelo sem saber", recorda Maria Alexandrina, para mostrar como a mistura se incorporou de vez ao cardápio da Pastoral da Criança. Era uma alimentação alternativa, fruto da inventividade de quem lutava, sem muitos recursos, para combater a desnutrição.

Dezenas de crianças se salvaram em Florestópolis e municípios vizinhos com a ajuda da Pastoral da Criança. Uma delas foi Denise Guimarães, que aos 16 anos está fazendo o segundo ano do ensino médio e se preparando para o vestibular de Odontologia.

"Eu estava grávida quando cheguei de Maringá e contei para Eunice que, como achava que o leite era fraco, havia amamentado pouco o primeiro filho, Evandro", lembra Cleusa Lopes Guimarães, mãe de Denise e atualmente coordenadora de setor. Eunice acompanhou a gestação e, quando a menina nasceu, incentivou Cleusa a amamentar.

Denise mamou no peito até os dois anos de idade.

Pastoral centralizada

Vinte anos depois, Florestópolis - 12.398 habitantes, pelo último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) - melhorou bastante, embora continue enfrentando problemas sociais, incluindo invasões de terras e um assentamento. "Os bóias-frias sofrem mais no período da entressafra", diz o padre Renato Colbert Bertin, há poucos meses na cidade.

Ao assumir a paróquia de São João Batista, ele confiou à Irmã Nelcy de Fátima Morais a coordenação da Pastoral da Criança, que em sua avaliação estava "meio lenta e muito centralizada". A Congregação das Irmãs Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus, à qual Irmã Nelcy pertence, dirige atualmente o colégio onde Irmã Eugênia Piettá, das Servas da Caridade, fez as primeiras reuniões da pastoral.

As coisas iam caminhando bem no segundo semestre de 1983, quando a Igreja decidiu transformar em Pastoral da Criança o projeto de redução da mortalidade infantil. O exemplo de Florestópolis suscitou iniciativas semelhantes em São Paulo - onde o então bispo auxiliar Dom Luciano Mendes de Almeida repetiu a experiência na região episcopal do bairro de Belém - e, logo em seguida, no Rio Grande do Sul.

A nomeação de d. Geraldo Majella Agnelo para a Comissão Episcopal de Pastoral (CEP) facilitou o processo, pois ele viajava com frequência a Brasília, onde tinha contato não só com outros bispos da CNBB mas também com a direção do Unicef. Foi do arcebispo de Londrina a ideia de chamar de pastoral o projeto iniciado pela Dra. Zilda.

Dom Geraldo fala das dificuldades que enfrentou:

"Houve resistência, no começo, porque se tratava de uma experiência nova e não se tinha uma visão clara de como devia ser organizada. Alguns achavam que a Pastoral da Criança deveria fazer parte da Pastoral da Saúde, que é mais ampla. Outros temiam que uma colaboração com o governo fosse comprometer a autonomia da CNBB, se a Pastoral da Criança viesse a ser usada como bandeira política. Isso não aconteceu. A parceria com o Ministério da Saúde (principal financiador da Pastoral da Criança) não interfere nas motivações, metas e prioridades da ação da Igreja."

Todos contra Pastoral

A Pastoral da Saúde e a Pastoral do Menor fizeram uma mobilização geral contra a Pastoral da Criança, quando souberam que ela estava assinando um convênio com o Inamps, sigla do antigo Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social. "Alegavam que o convênio ia amarrar a CNBB, que não permitiria que a Pastoral brigasse por melhores condições de vida para os pobres ou contra a corrupção no governo", lembra a Dra. Zilda.

"Por que o Ministério da Saúde vai gastar tanto dinheiro em hospitais para tratar de doenças que nós prevenimos?", argumentou a coordenadora para convencer o superintendente do Inamps, Ézio Cordeiro, a financiar o projeto. Convenceu, contando para isso com o apoio de uma amiga, a educadora sanitária Sophia Sarmiento, da Fundação Sesp.

"Sugeri que a Pastoral da Criança fizesse parte de um grupo maior, porque já existiam pastorais que cuidavam da saúde, do menor, das prostitutas e, no caso do Paraná, a Pastoral da Mulher", disse o bispo de Imperatriz (MA), d. Affonso Felippe Gregory, responsável na época pelo setor social na CNBB. Não se chegou a um acordo e ele votou contra o projeto - foi o único voto discordante na Comissão Episcopal de Pastoral.

Vinte anos depois, Dom Gregory elogiou o trabalho. "A Pastoral da Criança se impõe hoje pela magnitude, pois está presente na vida humana nos momentos mais delicados, cuidando da mãe antes de a criança nascer, acompanhando o parto e, quando vem o bebê, dando o soro caseiro e a alimentação alternativa para atender mãe e filho". Na diocese de Imperatriz, o escritório da Pastoral da Criança fica ao lado da sala do bispo.

Enquadramento

Outro crítico foi o bispo de Jales (SP), d. Luiz Demétrio Valentini, que também defendia o enquadramento da Pastoral da Criança num esforço mais amplo. Temia consequências negativas de uma eventual submissão ao governo. Cedeu à argumentação da Dra. Zilda, porque "logo se percebeu que havia diferenças significativas de atuação e de inserção nas políticas públicas do Ministério da Saúde".

D. Demétrio lembra que houve momentos de tensão maior. Quando, por exemplo, outras pastorais sentiram constrangimento com manifestações de apoio ao governo de Fernando Henrique Cardoso. "Houve ambiguidades até em faixas, mas isso foi superado", disse o bispo de Jales. A Dra. Zilda, em sua opinião, tem o mérito de haver assumido a liderança.

Em meio a toda essa discussão, levantou-se a voz de d. Serafim Fernandes de Araújo, então responsável pelo setor de comunicação social na CNBB. "Os argumentos contra não são nada mais que ideologias", advertiu o então arcebispo de Belo Horizonte, hoje cardeal, cujo voto decidiu o futuro da Pastoral da Criança.

A CNBB acompanha todos os passos da Pastoral da Criança, um dos 11 organismos de seu organograma. O responsável por ela é Dom Aloysio José Leal Penna, arcebispo de Botucatu (SP), que preside no Conselho Episcopal de Pastoral a comissão encarregada também da família e da educação.

Se a Pastoral da Criança presta contas aos tribunais do dinheiro recebido do governo, submete também à Igreja a estratégia e os resultados de seu trabalho. A Dra. Zilda Arns nunca faltou a uma assembleia geral dos bispos em Itaici, no município paulista de Indaiatuba, para apresentar no plenário um relatório de suas atividades.

Presente em todos os Estados brasileiros, seus 203 mil voluntários atuam principalmente nas periferias das cidades e nos bolsões de pobreza da zona rural. Em sua área de atuação, a taxa de mortalidade infantil é 60% menor do que a da média nacional. A pastoral trabalha em todas as dioceses e em 61% de suas paróquias. Embora seja um organismo da Igreja Católica, ela age como movimento ecumênico, sem discriminação, aberto a pessoas de outras religiões. Na Amazônia, uma coordenadora é evangélica da Assembleia de Deus.

20 anos; 15 ministros

O Ministério da Saúde é responsável por 80% dos recursos - cerca de R$ 20 milhões. Os outros 20% vêm do Unicef, das dioceses e de convênios menores. Nesses 20 anos, não houve dificuldade com o governo, com nenhuma administração. A Dra. Zilda, que nesse tempo teve de se entender com uns 15 ministros da Saúde, manifesta gratidão particular a alguns deles.

Alceni Guerra, que foi ministro de Fernando Collor e é paranaense, deu muito apoio ao programa. "A Pastoral da Criança vai ser uma das prioridades do governo", ele prometeu e cumpriu a promessa, pois fez um substancioso convênio com o projeto. No governo de Itamar Franco, houve atrasos de verbas, que o ministro da Saúde, Henrique Santillo, não conseguia liberar

"Recorri então ao ministro da Fazenda, que era o Fernando Henrique, que liberou o dinheiro, revela a Dra. Zilda. A médica entrou no gabinete dele sem marcar audiência, apenas mandou avisar que a irmã de Dom Paulo Evaristo Arns queria falar por cinco minutos com ele. "Quando FHC assumiu o governo, fiquei muito feliz, porque, desde o primeiro convênio, os pagamentos eram feitos em dia".

O ministro José Serra era um entusiasta da pastoral, cuja sede visitou duas vezes em Curitiba. "Se o Brasil todo fala bem da Pastoral da Criança, quero ser o maior parceiro dela", disse Serra. Foi ele quem sugeriu ao presidente da República que apresentasse as candidatura da Pastoral da Criança ao Prêmio Nobel da Paz.

No governo de Luiz Inácio Lula da Silva, as verbas não foram ainda reajustadas, mas o pagamento está em dia. "Lula, que escancarou a fome no Brasil, um problema que talvez muita gente não conhecia, mandou o ministro Tarso Genro me convidar para participar do Conselho de Segurança Alimentar e do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social", disse a Dra. Zilda.

Ela aceitou o convite, embora não tenha muito tempo de assistir às reuniões, por causa de outros compromissos. Além de coordenar a Pastoral da Criança, a médica tem múltiplas atividades. Foi membro do Conselho Nacional da Saúde e dirigiu o serviço da Saúde Materno Infantil, do Ministério da Saúde. Engajou-se depois no Programa Fome Zero, ao qual manifestou um apoio crítico, com base em sua experiência anterior nessa área.

Aconselhou, por exemplo, o ministro José Graziano da Silva, do Ministério Extraordinário da Segurança Alimentar e Combate à Fome, a não exigir a apresentação de cupons ou de notas fiscais para uma família receber um auxílio. "Seria necessário nomear um batalhão de funcionários só para controlar isso, dinheiro jogado fora", argumentou a Dra. Zilda, apontando dificuldades especialmente na zona rural. Parece que convenceu, pois a ideia não foi adiante.

De Florestópolis para o mundo

Depois de se espalhar pelo Brasil, a Pastoral da Criança atravessou fronteiras para chegar a outros países da América Latina, África e Ásia. "Em Angola, comecei em 1994 um treinamento com 17 mulheres e hoje, menos de dez anos depois, há 2.500 angolanas capacitadas, trabalhando num programa igual ao nosso e atendendo a pelo menos dez mil crianças".

Argentina, Bolívia, Colômbia, Chile, Equador, México, Paraguai e Venezuela na América Latina; Guiné-Bissau e Moçambique na África; e Timor Leste e Filipinas na Ásia copiaram a receita com sucesso, sempre em benefício das populações mais pobres. O México levou a pastoral a comunidades indígenas - o que ocorre igualmente no Brasil. "Recebi também uma visita de ciganos, que são nômades, interessados em treinar líderes para cuidar das crianças", revela a Dra. Zilda.

A maioria dos 203 mil voluntários da Pastoral da Criança vem da própria comunidade. É gente que mora em favelas e palafitas, nos grandes bolsões de pobreza, onde a desnutrição ameaça e as doenças matam mais. Esses voluntários recebem a orientação de sete mil equipes de coordenação - profissionais, aposentadas e pessoas idosas, mas também jovens, todos muito animados e atuantes.

Sentem orgulho de vestir a camiseta da Pastoral, com a inscrição "para que todas as crianças tenham vida", o lema criado em 1983 por d. Geraldo Majella Agnelo - inspiração do Evangelho - quando o incipiente projeto de redução da mortalidade infantil começava a engatinhar no norte do Paraná. Todo mundo uniformizado, as reuniões para o Dia do Peso são uma festa. Quem vai uma vez não quer mais faltar.

"A mãe de Juliana, que mudou para um sítio, prometeu trazer a menina todo mês para a gente pesar", disse a coordenadora de setor Juracy Jesus dos Santos, em Florestópolis, preocupada com o risco de a mulher não voltar. Juliana, que chegou à Pastoral com peso baixo, quando tinha um mês e meio de idade (tem quase dois anos agora), é hoje uma criança sadia, porque seguiu direitinho a dieta da multimistura.

A Pastoral da Criança tem uma estrutura simples. Em sua sede, em Curitiba, trabalham 40 funcionários contratados. Dali, num belo casarão recebido em comodato do governo estadual - antes, era um orfanato de meninas - eles controlam o movimento, sempre em contato com os coordenadores em todo o País. O material de apoio sai das salas da Rua Jacarezinho, n.º 1691, bairro das Mercês, onde funciona a Coordenação Nacional.

Quase nenhuma burocracia. "Quando vêm os auditores e fiscais do Tribunal de Contas da União, espalhamos os documentos em cima de uma mesa grande para eles examinarem. Fazemos isso quase todos os meses e, graças a Deus, nunca tivemos problemas", disse Dra. Zilda. A inspeção era feita antes em Brasília, mas o trabalho foi descentralizado. Uma economista, um contador e dois estagiários cuidam dos convênios.

Técnicos, contratados pela média do mercado, preparam o material educativo, treinam os multiplicadores e acompanham as ações. Digitadores processam nos computadores as fichas manuscritas que chegam de todos os cantos do Brasil. Além do controle das cinco ações básicas, segredo da eficácia do programa, a Pastoral da Criança promove cursos de alfabetização de adultos, círculos bíblicos, encontros de reflexão, oficinas de avaliação...tudo na linha de evangelização da Igreja.

Comunicação

O Jornal Pastoral da Criança, com uma tiragem mensal de 250 mil exemplares e também disponível na Internet (www.pastoraldacrianca.org.br) registra o que o programa está fazendo, transmite as orientações da Coordenação Nacional e publica pequenas reportagens enviadas pelas comunidades sobre suas conquistas e suas dificuldades. Nem sempre há espaço para publicar tudo, mas nada fica sem resposta. Além de assinar uma coluna no jornal - Conversando com Você - a Dra. Zilda enviava cartas pessoais para animar as equipes.

A Coordenação Nacional produz também o programa semanal de rádio Viva a Vida, de 15 minutos, que é transmitido por 1.700 emissoras. Distribuído em fita cassete, ele é gravado em dois estúdios, para atender às diferenças regionais de linguagem - um em Curitiba, para as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, e outro em Teresina, para o Norte e Nordeste. Fala de temas como saúde, instrução, direitos e organização comunitária.

Antes de se mudar para a sede atual, a Pastoral da Criança funcionava na casa de Dra. Zilda, que tinha ali também seu consultório particular de pediatria. Meio apertado, mas deu para conciliar enquanto os colaboradores não eram tantos e não havia tanto material como hoje. Como a médica trabalhava também no serviço público, as coisas foram ficando cada dia mais complicadas, pois não havia tempo nem espaço para tudo.

"Meu consultório era quase uma extensão do posto de saúde, pois as pessoas batiam à minha porta a qualquer hora, às vezes até de madrugada", recorda a Dra. Zilda. Os pobres, principalmente os pobres, recorriam sempre a ela - o que significava 18 consultas de graça em cada 20. A situação ficou ainda mais difícil quando a coordenadora da Pastoral da Criança passou a viajar com mais frequência, com ausências de semanas seguidas. "Fico pouco em Curitiba, apenas alguns dias por mês".

De mãe para filho

Nelson Arns Neumann, que também é médico pediatra e assumiu a função de coordenador nacional adjunto, substitui a mãe durante as suas constantes viagens. Mergulhou de cabeça no programa, cujas atividades vem acompanhando desde a fundação - ele e os outros irmãos. Sempre seguiram tudo de perto, apoiando e dando palpites - o voluntariado em família.

Eram adolescentes e crianças, em 1983, quando a Dra. Zilda aproveitou a conversa, naquela noite em que fazia uma vitamina para eles na cozinha, para falar do telefonema de d. Paulo, o tio cardeal. Agora, Rubens é veterinário, Heloísa é psicóloga e Rogério é administrador de empresas. Sílvia, que também era administradora de empresas, morreu e deixou um filho, de três anos, que foi morar com a avó.

A família tem uma chácara, a 20 minutos do centro de Curitiba, que mãe e filhos compartilhavam, cada um em sua casa, como faziam os Arns em Forquilhinha, na colônia de imigrantes alemães de Santa Catarina, onde Zilda e seus 12 irmãos nasceram. D. Paulo, que costumava passar ali pelo menos uma semana de suas férias anuais, telefonava com frequência para matar a saudade dos parentes.

O cardeal pede também notícias da Pastoral da Criança. Sempre que pode, a Dra. Zilda o visitava em São Paulo, para trocar ideias e pedir conselhos.

Passavam horas conversando sobre a obra que sonharam e construíram juntos.


José Maria Mayrink, de O Estado de S.Paulo

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