Livro de Maurice Politi conta a história da greve de fome realizada pelos presos políticos em 1972
Por Rui Veiga
A violência de Estado contra o cidadão brasileiro, preconizada dentro do espírito da Doutrina de
Segurança Nacional, constituiu-se em prática cotidiana dos Governos Ditatoriais Cívis-Militares
instalados no Brasil em 1964, processo aprofundado após a promulgação do AI - 5 em dezembro
de 1968. Mais que isso, pôs nua a falácia dos principais argumentos de que em nosso país as
questões políticas sempre se resolveram através do diálogo.
Uma das facetas repressoras do mencionado estado ditatorial, que sempre tratou questões
políticas e sociais lançando mão do polinômio: forças armadas, polícia, aparatos paramilitares e
burocracia, está representada no agora lançado livro de Maurice Politi:
“Resistência Atrás das Grades”
(publicação conjunta do Núcleo de Preservação da Memória Política - Núcleo Memória) e da
Editora Plena, São Paulo, 208 páginas + capas, R$ 25,00).
Esse livro conta um episódio pouco conhecido da resistência à ditadura militar, fato este ocorrido
no ano de 1972. Apesar do longo tempo decorrido desde então, a obra de Politi está muito
distante de ser uma peça meramente histórica e conivente com o senso comum da índole pacífica
da luta política neste país. E, muito menos se coloca como um mosaico de reflexões revanchistas
ou saudosista sobre aquele passado. Principalmente, porque este texto revela ao leitor uma f
orma de luta sucedida dentro das prisões do regime militar, que tinha como foco a contestação a
repressão política do estado ditatorial.
O episódio - reitera-se – é praticamente desconhecido para a maioria do público. Trata-se de
uma batalha política contra um Estado, cujos alicerces se assentavam na tortura, na prisão e na
morte de cidadãos, que se recusavam a compartilhar com a natureza violenta e ditatorial e se
calar diante da opressão. Sistema que se implantara em nosso país em 1964 e aprofundou-se
(expressão cunhada pelo então ministro da fazenda senhor Delfim Netto em seu voto a favor da
implantação do AI – 5 em 13 de dezembro de 1968).
A greve de fome, peça central deste livro, deflagrou-se de surpresa nos idos de 72 entre os
presos políticos de São Paulo, de forma muito bem organizada. Inclusive, talvez seja a primeira
forma de luta conjunta utilizada contra a ditadura nas prisões naqueles tempos. Essa ação foi
fruto da ação de um grupo grande de presos políticos condenados a longas penas, que estiveram
até então confinados no Presídio Tiradentes em São Paulo (uma das muitas masmorras da
Ditadura Militar) e foram transferidos para outra prisão.
O gesto extremo de protesto se deu em função da política consciente do regime militar em
separar os presos considerados “recuperáveis” daqueles que a ditadura achava que eram
“terroristas e sem perspectiva de recuperação para a “sociedade” a terem sua transferência à
Penitenciária Regional de Presidente Venceslau, situada no extremo oeste do Estado, a 700 km
da capital. Alguns dos seis presos transladados* permaneceram em Presidente Venceslau até
1976.
“Resistência Atrás das Grades” resgata com precisão de um arqueólogo, fatos históricos que,
embora presentes nas mentes de muitos brasileiros, sistematicamente foram varridos e
esquecidos nestes quase 40 anos transcorridos desde 1972. Período no qual a pasteurização
cultural trazida pela onda da modernidade conservadora produto da globalização tentou – sem
sucesso – apagar todos os sinais das lutas de resistência aos governos militares do conhecimento
das gerações posteriores, que não viveram aqueles tempos.
À época dos fatos narrados no livro, o autor, um jovem militante da Ação Libertadora Nacional
(ALN), que havia sido torturado no Dops e na OBAN em São Paulo, estava preso e condenado a
dez anos de prisão. O texto construído na obra é uma peça de história viva e supera e muito a
grande maioria dos escritos, que abordam a temática sobre o período pós AI – 5. Essa superação
se dá em conseqüência da forma da narrativa e de seu conteúdo, que combina o lado político e os
vieses emocional e humano de uma luta contra a repressão ditatorial vigente durante o Governo
Médici (1969-1974).
O livro não possui um texto rebuscado, repleto de figuras de linguagem e, tampouco, estará ao
gosto de alguns críticos literários (ditos isentos!!??), que em sua sanha diária de apagar as
memórias políticas dos anos de então, prestam notórios serviços à desinformação e à alienação
deste público brasileiro, ansioso em conhecer sua história política recente.
“Resistência Atrás das Grades” está escrito em um texto direto, totalmente baseado no
depoimento direto de um jovem militante prisioneiro e, igualmente, se baseia solidamente sobre
documentos da época – alguns destes inéditos e preciosos para a reconstituição daquele
momento - recolhidos em diversos arquivos históricos consultados pelo autor. A estrutura
narrativa é retirada do próprio manuscrito redigido por Maurice Politi ainda no calor do embate
e abrange o período, que se inicia com a eclosão do movimento grevista: 12 de maio de 1972 até
seu encerramento em 11 de julho do mesmo ano.
Em 9 de junho, os seis presos foram transferidos presídios indo de São Paulo para o Interior.
Contém também algumas páginas complementares de escritos da época, porém já quando a
greve se encerrara, após os presos que lá se encontravam haverem sido integrados à população
carcerária comum.
O que apaixona em “Resistência Atrás das Grades” é seu caráter documental elaborado sem
preocupações com estilo e linguagem, mas preocupado primordialmente em registrar o momento
da luta, seu calor e os fatos que se sucediam. Consiste em um texto sem qualquer outra
preocupação que não a de deixar um testemunho dos acontecimentos dentro dos cárceres
paulistas durante a ditadura militar. Inclusive, pelo fato do autor (e os demais participantes do
movimento) naquele período não ter qualquer certeza sobre seu futuro e sua própria vida,
porque a contestação ao governo militar em muitas outras ocasiões assassinara e torturara
centenas de brasileiros.
Desse modo, temos na obra muito mais que uma preocupação literária ou historicista. No
contexto desenvolvido, sente-se uma narrativa, que procura testemunhar na voz de um ator, o
próprio Politi, em primeira pessoa, os passos de uma luta política, que apesar de todas as
condições desfavoráveis a seus participantes, resultou felizmente vitoriosa.
A escrita do autor naquele período, talvez em uma mescla de impulsividade com a necessidade
do registro momentâneo revela-se igualmente um documento histórico imprescindível para
pesquisadores, estudiosos e cidadãos, que queiram conhecer as entranhas de uma ditadura, que
se julgou por um tempo onipresente e onisciente.
O texto reflete os sentimentos fortes, as emoções e os naturais receios sobre as conseqüências
que os presos rebelados poderiam sofrer nas mãos dos seus carcereiros: juízes militares (como o
sinistro Nelson Machado Guimarães); militares e policiais torturadores; guardas de prisão e
médicos coniventes com o sistema carcerário vigente. Não se pode esquecer a presença de uma
imprensa praticamente cúmplice da Ditadura. Aliás, esta em seu afã de defender a opressão
instaurada reproduzia periodicamente em suas páginas, matérias, informes publicitários e
artigos criminalizando os revoltosos e os opositores ao regime.
Neste último aspecto, o livro de Politi apresenta também um caráter testemunhal da sociedade
política (no sentido a esta oferecido por Antonio Gramsci em seu renomado escrito intitulado
“Cadernos do Cárcere”).
A versão e a óptica áulica sobre a ditadura por parte da imprensa pode ser constatada em edito
reproduzido e estampado integralmente no livro de Políti à página 181, em editorial do jornal da
Ditabranda (perdão leitores, quero dizer da Folha de S. Paulo), que “demonstrava” a inexistência
de presos políticos no país de Médici, de Delfim Netto, do banqueiro Gastão Bueno Vidigal, de
Fleury, de Ustra** e outros do mesmo nível. Escrevia assim àquela época (30 de junho de 1972)
o jornal dos senhores Octávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho (também dois dos aliados
de primeira hora do Golpe Militar de 1964):
“Ninguém neste país ignora também haver, ainda que tão minoritário, que inexpressivo, um
pensamento contrário ao Governo e à Revolução...”. Os termos governo e revolução eram
eufemismos pelos quais os adeptos da ditadura camuflavam o caráter repressivo do Governo
Médici.
Felizmente a bem da verdade, da história e para os nossos tempos, o livro de Politi desmente na
prática tal assertiva tão conforme com os paradigmas dos arautos daquele Poder.
* Os sete presos que seriam transferidos eram: Frei Fernando de Britto, Frei Yves do Amaral Lesbaupin, Frei Carlos Alberto Libânio (o Frei Betto), Mário Bugliani, Vanderlei Caixe, Manoel Porfírio de Souza e Maurice Politi. A ordem de transferência foi assinada pelo juiz Nelson da Silva Machado Guimarães da II Auditoria Militar de São Paulo em 7 de junho de 1972. Mário Bugliani por estar muito doente teve sua transferência comutada.
**Refere-se ao militar comandante da Operação Bandeirante em São Paulo, Major Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos principais torturadores do período repressivo.
Rui Veiga é jornalista e crítico literário
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