terça-feira, 24 de novembro de 2009

TURMA DA SAVASSI

REPENSANDO A HISTORIOGRAFIA DA MÚSICA POPULAR


BRASILEIRA: A BOSSA NOVA E SEU PERCURSO PELAS MINAS GERAIS

1-Resumo:

Esta pesquisa busca explicitar algumas questões pouco usuais a respeito da Bossa Nova. Importantes escritores do assunto, como é o caso de José Ramos Tinhorão, geralmente identificam o movimento bossa-novista com a classe média alta, branca e universitária da Zona Sul do Rio de Janeiro, e ainda afirmam que ela significaria a “deturpação de nossas raízes culturais”, uma vez que o jazz, produto norte-americano, teria se mesclado ao samba “puro” do Brasil.


Indo em sentido oposto, pode-se constatar que a Bossa Nova não foi monopólio de uma classe média branca da Zona Sul carioca. Músicos como Baden Powell (mulato) e Moacir Santos (negro), por exemplo, estavam, desde o início, envolvidos no processo de criação dessa nova estética artístico-cultural da música brasileira. E mais: o Sinatra- Farney Fã-Clube, situado na Zona Norte carioca, funcionou, na prática, como uma espécie de laboratório para músicos como João Donato, Paulo Moura e Johnny Alf, inegavelmente relevantes para a Bossa Nova.


Sem se ater a fronteiras geográficas, o objeto mais importante da pesquisa está focado na capital mineira Belo Horizonte, onde, na década de 1960, despontou o Conjunto Sambacana, que, liderado pelo músico e compositor Pacífico Mascarenhas, destinava-se a tocar e criar canções bossa-novistas. O esforço do trabalho neste momento é mostrar, especialmente através da discografia disponível, as interações e reapropriações da Bossa Nova mineira, tendo em vista o que já era feito no Rio de Janeiro.


Na mesma década de 1960, surgiria em Belo Horizonte o Clube da Esquina, com Milton como sua principal estrela. Neste ponto, a pesquisa se preocupa em investigar a importância da Bossa Nova como fonte estético-musical para o Clube da Esquina, levando em conta que umas das primeiras vezes que Milton Nascimento gravou em estúdio foi juntamente com Pacífico Mascarenhas, no LP Quarteto Sambacana Muito pra frente, em 1965.


Em Belo Horizonte, em meados dos anos 1950, uns tantos jovens, freqüentadores da Praça da Savassi, estavam à procura de coisas novas, musicalmente falando, e, para regar as serenatas que faziam, escolhiam o que havia de mais moderno, na área dos sambas-canções.

2 A turma da Savassi é uma turma que a gente tinha, fazia ponto na padaria Savassi. A gente saia dos colégios... acabava a aula, a gente se reunia na porta da Savassi, reuniam-se até 60 pessoas, jovens. A gente ficava ali parado, vendo o movimento, esperando a hora do almoço, e de tarde a gente voltava de novo... E a gente então naquela época gostava de fazer muita serenata de noite. Essas serenatas eram umas serenatas assim mais modernas.


O que a gente cantava era samba-canção, aquelas músicas do Lúcio Alves, Dick Farney. A gente tinha um grupo que gostava de música, e começava a cantar, e a gente ensaiava um vocal e cantava

2. O nome que mais veio a se destacar dentre os jovens que freqüentavam a Praça da Savassi, no bairro dos Funcionários, em Belo Horizonte, foi Pacífico Mascarenhas. Jovem de classe média, relativamente bem situado do ponto de vista social, Pacífico já levava jeito com o piano e o violão e embalava as serenatas juntamente com seus amigos da turma da Savassi. Ele relata, então, como foi que se deu conta de que poderia começar a compor os seus primeiros sambas-canções:

Nessas serenatas eu encontrei um amigo meu lá na porta do Colégio Izabela, que era um internato feminino. Ele tava fazendo uma serenata lá...

Chamava-se Alceu Tunes. Aí ele acabou de cantar e começou a cantar outra música. Aí eu falei: ‘oh Alceu, mas que música bonita é essa?’ Ele falou: ‘foi eu que fiz’. Aí eu falei: ‘mas num é possível. Você fez uma música? Uai, Alceu, você vai lá em casa amanhã pra eu ver que história de música é essa que você fez. Eu tô impressionado de você ter feito uma música. Eu nem imaginava que pudesse fazer uma música...’ Na hora que ele foi lá em casa com uma música dele, eu já fiz uma letra, uma música que chamava ‘Pam pam pam’: ‘Pam pam pam, meu bem, cheguei’. Pam pam pam era a buzina do carro. ‘Anda depressa, que moleza é essa, eis meu carro, meu violão, ouço daqui seu coração’. Daí ele deixou essa música, eu fiz essa letra, fiz outra e depois eu peguei o jeito como era, como é que fazia música. Eu já tocava piano. O violão já tava aprendendo.


Foi por meados da década de 50, meados de 1955. Aí eu peguei o jeito e comecei a fazer uma série de sambas-canções, tipo, por exemplo, a música ‘Anos Dourados’. (Entrevista com Pacífico Mascarenhas, BH/MG, 2007).


Em 1956, a passeio na cidade de Diamantina, onde sua família possuía uma tecelagem na região, conheceu a ninguém menos que João Gilberto3. Depois de um turbilhão de acontecimentos em sua vida, João Gilberto se encontrava deprimido, sua única saída foi procurar refúgio na casa de sua irmã Dadainha que vivia em Diamantina. Pacífico Mascarenhas, ao saber que havia um jovem na cidade que também gostava de música e tocava violão, foi procurá-lo. O encontro não rendeu muita coisa.

Anos depois, Pacífico reencontraria João Gilberto em outras condições no Rio de Janeiro.


Um dia, eu tava lá em Diamantina, aí um pessoal falou que tinha um camarada do Rio aí... Aí eu fiquei conhecendo o João Gilberto lá antes dele ter gravado o primeiro disco. O cunhado dele tava lá em Diamantina, fazendo um trecho da estrada Rio-Bahia, eu não sei porque, então eles alojaram lá em Diamantina, e ele ficou morando lá com a irmã dele que chamava Dadainha. E
nessa época eu conheci ele. Eu tive assim pequenos contatos com ele: ele muito tímido, e tal. E depois, mais tarde, minha amizade com ele aumentou no Rio de Janeiro.

Aí eu já procurei ele no Rio de Janeiro, já freqüentava a casa dele, já fui pegando o jeito. E tive a oportunidade de ver até a gravação que ele fez, quando gravou um 78 rotações: de um lado a música ‘Desafinado’ e do outro lado ‘Bim bom. (Entrevista com Pacífico Mascarenhas, BH/MG, 2007).


Pacífico, voltando para Belo Horizonte, estreitou ainda mais seus contatos com o pessoal do Rio de Janeiro. Sempre que ia ao Rio, procurava por João Gilberto, que já começara a ficar famoso. Através desses contatos, conheceu Tom Jobim, Roberto Menescal, Eumir Deodato, Dorival Caymmi e outros.


Em Belo Horizonte, a turma da Savassi já ganhara nome e, geralmente, quem se responsabilizava por traduzir os sentimentos da turma em canções era Pacífico. A partir de então, suas canções começaram a ganhar uma conotação bossa-novista. ...aí eu notei também que tinha muita coisa que a gente queria falar pras moças e pras namoradas dos amigos, coisa que não tinha música ainda.


Então eu inventava, por exemplo, ‘Se eu tivesse ao menos coragem de dizer que te amo’, então tudo que a turma sentia, eu ia fazendo melodias, com as letras falando nesses assuntos. (Entrevista com Pacífico Mascarenhas, BH/MG, 2007).


Ainda em 1958, Pacífico preparou seu primeiro disco para ser gravado no Rio Janeiro, Um passeio musical, junto com outros dois músicos mineiros, Paulo Modesto e Gilberto Santana, pela Cia Brasileira de Disco (hoje Universal), mas com produção independente.


Muitas das reuniões da turma da Savassi aconteciam nas casas dos integrantes da turma, e aqueles grupinhos que, costumeiramente, se encontravam para tocar violão e conversar, passaram a realizar o que se chamou Sambacana, ou seja, “reuniões na base de samba e cana, nas quais eram mostradas as novas composições aos amigos” (conforme Pacífico Mascarenhas).


Outro nome importante da turma do Sambacana é Roberto Guimarães, que, segundo seu próprio relato em entrevista, só teria conhecido Pacífico Mascarenhas e participado dessas reuniões, após sua música “Amor certinho” ter sido gravada por João Gilberto. O primeiro contato de Roberto Guimarães com a Bossa Nova foi através da Rádio Nacional, que começara a tocar o primeiro compacto gravado por João Gilberto (com “Chega de Saudade” no lado A) e também através de seu primo Márcio Guimarães, que morava no Rio de Janeiro e tinha aulas de violão na academia de Carlinhos Lyra.


Aí o Márcio veio passar umas férias em Belo Horizonte e ficou hospedado lá na casa dos meus pais. O Márcio começou então a me passar alguma coisa, aqueles acordes novos de Bossa Nova, e eu me encantei com aquilo. Mas o meu primeiro contato realmente com a Bossa Nova foi na minha casa, na casa do meu pai. Eu tava saindo de casa, na sala tinha um rádio, esses rádios grandões RCA, e aí eu comecei a ouvir João Gilberto cantando “Chega de Saudade”, e aquilo foi como se fosse um soco na minha cara, né, a sensação que eu tive foi essa. E falei: ‘quê que é isso, heim?’ Nunca tinha ouvido nada parecido, em termos de ritmo, de jeito de cantar, de emissão de voz. E aquilo, eu fiquei parado, mas que coisa maravilhosa! O João Gilberto tinha lançado
um 78 rpm, que de um lado, era ‘Chega de Saudade’ e, do outro lado, ‘Oba la la.

4. A partir daí, Roberto Guimarães, que já possuía alguns sambas-canções, começou a compor músicas de Bossa Nova. E compôs tão bem que foi contemplado com a gravação de sua música “Amor certinho” por João Gilberto no LP O amor, o sorriso e a flor, em 1960. João Gilberto, em 1959, foi fazer um show em Belo Horizonte no Minas Tênis Clube, e na oportunidade Roberto Guimarães o conheceu. A mesma canção fora gravada anteriormente por Jonas Silva, ex-integrante do grupo vocal Os Garotos da Lua, a pedido do próprio João Gilberto, que também atuou no grupo.


E lá na turma nossa, tinha umas moças que eram de Diamantina, a família ligada a Diamantina, que faziam parte da turma, eram amigas minhas, e por coincidência o João veio aqui com a Astrud Gilberto, a mulher dele na época...

A Astrud é carioca, o pai dela, inclusive, acho que é descendente de alemão, e a mãe é descendente aqui desse pessoal de Diamantina. Aí quando acabou o show, as minhas amigas lá de Diamantina falaram assim: ‘ô, Roberto, o João e a Astrud vão lá pra casa da nossa tia’, (que era há dois quarteirões do Minas). ‘Você quer ir lá conosco?’ Falei: ‘vamos, uai.’ Aí chegamos na casa da tia delas, o João já tava lá na sala sentado no sofá com a Astrud e as tias delas todas. Eu já conhecia a família. E aí elas entraram e me apresentaram pro João e pra Astrud: ‘esse aqui é o Roberto Guimarães, um amigo nosso, faz serenata, é compositor, cantor, tem umas músicas aí que ele queria te mostrar.’ Mas a gente não tinha combinado nada disso. Nunca tive essa pretensão de achar que eu ia cantar pro João Gilberto. Mas aí pegaram o violão do João, porque eu não tava com violão, e botaram na minha mão, eu peguei e cantei. Cantei umas cinco músicas pro João que eu tinha, e o João não se pronunciava; eu cantava e ele só ficava olhando. Aí acabou, ele falou assim comigo: ‘canta aquela segunda de novo’ (era o ‘Amor certinho’); eu cantei, né? Ele pegou, falou assim: ‘canta de novo’, eu cantei de novo. Aí ele pegou o violão, tirou a harmonia toda, pediu pra eu escrever a letra e falou assim: ‘eu vou gravar a sua música. “Eu quase caí pra trás”
(Entrevista com Roberto Guimarães, BH/MG, 2007).


Em 1963, Pacífico inventou um método de acompanhamento de violão com os acordes desenhados para aparecer na capa do disco. E para esse LP, intitulado Conjunto Sambacana, lançado em 1964 pela Odeon, os arranjos ficaram por conta de Roberto Menescal e Hugo Marotta, os teclados, a cargo de Eumir Deodato e vozes eram de um tal de Toninho (que nunca mais apareceu) e Joyce, que, convidada por Menescal, pela primeira vez colocava sua voz em disco.


O Conjunto Sambacana, formado praticamente para a gravação desse primeiro disco, na realidade não existia como um grupo. Aliás, “uma porção de gente queria contratar o grupo que praticamente não existia” (conforme Pacífico Mascarenhas).


Convidado pela Odeon, em 1965, para gravar o segundo Sambacana – Quarteto Sambacana – Pacífico, que havia acabado de conhecer Bituca (Milton Nascimento) e Wagner Tiso, recém-chegados de Três Pontas, os levou para o Rio de Janeiro, juntamente com Marcos de Castro, compositor e arranjador mineiro, e também Gileno, irmão de Wagner Tiso.

Registra-se que: A primeira vez que Bituca entrou num estúdio foi para gravar ‘Barulho de Trem’. A segunda foi para gravar como vocalista num disco de Pacífico Mascarenhas. (BORGES, p. 69).


Marco interessante na carreira de Milton Nascimento: seus primeiros passos musicais o ligam à Bossa Nova, sem falar que ele ao contrabaixo, juntamente com Wagner Tiso ao piano e Paulo Braga na bateria, compunham o Berimbau Trio, que tocava jazz e Bossa Nova nas noites belo-horizontinas.


E fomos pro Rio gravar o disco. Fomos eu, o Bituca, e nós fomos num carro que eu tinha, um Sinca Chawbord, que foi enguiçando o tempo todo pelo caminho. E toda hora o Bituca tinha que entrar debaixo pra soltar o óleo, pra soltar a roda. E foi uma viagem assim triste mesmo pra gente ir pro Rio pra gravar esse disco. (Entrevista com Pacífico Mascarenhas, BH/MG, 2007).

Logo se vê que a turma da Savassi e o Sambacana, liderado por Pacífico Mascarenhas, funcionaram como pontes entre o Rio de Janeiro e Belo Horizonte, estabelecendo várias conexões entre esses trajetos.


Referências


BORGES, Márcio. Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina. 5. ed.
São Paulo: Geração Editorial, 2004.
CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. 3. ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
MEDAGLIA, Júlio. Balanço da bossa nova. In: CAMPOS, Augusto de. Balanço da
bossa e outras bossas. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1978,
PARANHOS, Adalberto. Novas bossas e velhos argumentos: tradição e
contemporaneidade na MPB. História & Perspectivas, Uberlândia, UFU, n. 3, jul.-dez.
1990.
TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular: da modinha ao
tropicalismo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1986.
Discografia
- Conjunto Sambacana. LP Odeon, 1964 (relançado em CD).
- João Gilberto. LP Chega de saudade. Odeon, 1959.
- João Gilberto. LP O amor, o sorriso e a flor. Odeon, 1960 (relançado em CD).
- Luiz Eça Trio. CD Velas, 1995.
- Milton Nascimento. LP Courage. A & M Records, 1968 (relançado em CD).
- Milton Nascimento. LP Travessia. Codil, 1967 (relançado em CD).
- Nelson Ângelo e Joyce. Nelson Ângelo & Joyce. Emi-Odeon, 1972.
- Pacífico Mascarenhas. CD Guinness Bossa Novíssima. Song Disc, 2002.
- Quarteto Sambacana. Muito pra frente.
Odeon, 1965 (relançado em CD).
- Roberto Guimarães e convidados. Amor certinho. Sonhos & Sons, 2003.


7 - Fontes consultadas


- Acervo do Centro de Documentação e Pesquisa em História da Universidade Federal
de Uberlândia.
- Caras (edição especial) nº 19, ano 3 – jun. 1996, v. 2: A história da Bossa Nova.
- Dicionário Grove de música: edição concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
- Enciclopédia da música brasileira: popular, erudita e folclórica. 2ª ed. São Paulo: Art/
Publifolha, 1998.
- Entrevista com Pacífico Mascarenhas, dia 09 de junho de 2007, em Belo
Horizonte/MG.
- Entrevista com Roberto Guimarães, dia 09 de junho de 2007, em Belo Horizonte/MG.


http://www.museudepessoas.com.br


http://www.pacíficomascarenhas.com.br


Sheyla Castro Diniz
Universidade Federal de Uberlândia/UFU
Graduanda em Ciências Sociais e Música pela Universidade Federal de Uberlândia.


sheyladiniz@yahoo.com.br

2 Trecho da entrevista concedida por Pacífico Mascarenhas, exclusivamente para esta pesquisa. Belo Horizonte/MG, 09 de junho de 2007.

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