
MPF/SP move ação civil contra Tuma, Maluf e legista por ocultação de cadáver
Ação pede responsabilização pessoal dos réus pelo desaparecimento de militantes políticos, em
São Paulo, durante a ditadura; em outra ação, universidades e legistas são acusados de demora
indevida para identificar vítimas da vala de Perus
O Ministério Público Federal em São Paulo (MPF/SP) ingressou hoje, 26 de novembro, na
Justiça Federal com duas ações civis públicas para que sejam declaradas as responsabilidades
pessoais de autoridades e agentes públicos civis e da União, Estado e Município de São Paulo por
ocultações de cadáveres de opositores da ditadura militar (1964-1985), ocorridas na capital, nos
cemitérios de Perus e Vila Formosa, e a de pessoas jurídicas e legistas que contribuíram para que
as ossadas de mortos e desaparecidos políticos na vala comum de Perus
permanecessem sem identificação.
Na ação civil sobre as ocultações de cadáveres, o MPF pede que seja declarada a
responsabilização pessoal de cinco autoridades da época:
do delegado Romeu Tuma,
atualmente senador por São Paulo, que foi chefe do Departamento Estadual de Ordem Política e
Social, o Dops, entre 1966 e 1983;
do médico legista Harry Shibata,
ex-chefe do necrotério do Instituto Médico Legal de São Paulo; dos ex-prefeitos de São Paulo,
Paulo Maluf (gestão 1969-1971), atualmente deputado federal, e
Miguel Colasuonno (gestão 1973-1975), e de
Fábio Pereira Bueno, diretor do Serviço Funerário Municipal entre 1970 e 1974.
O MPF/SP pede que os cinco sejam condenados à perda de suas funções públicas e/ou
aposentadorias.
Caso sentenciados, os mandatos atuais de Tuma e Maluf não seriam afetados, pois a Constituição
impede a perda de mandato em ações civis públicas.
Além da cassação das aposentadorias, o MPF pede que as pessoas físicas sejam condenadas a
reparar danos morais coletivos, mediante indenização de, no mínimo, 10% do patrimônio pessoal
de cada um, revertidos em medidas de memória sobre as violações aos direitos
humanos ocorridos na ditadura.
Revelações -
O MPF/SP sugere na ação a possibilidade de o juiz diminuir eventual pena em dinheiro se os
réus, antes da sentença, declararem publicamente, em depoimento escrito e audiovisual, os fatos
que souberem ou de que participaram durante a repressão política no período de 1964 a 1985,
mas que ainda não sejam de domínio público.
Uma das principais fontes de dados para a ação civil proposta foram os documentos e
depoimentos colhidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara Municipal de São
Paulo, instituída por ocasião da abertura da vala comum do Cemitério de Perus, em setembro de
1990, para apurar a participação de servidores e autoridades municipais no episódio.
O MPF usou, ainda, as informações divulgadas pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República, no livro "Direito à Memória e à Verdade" e documentos obtidos no
Arquivo do Estado de São Paulo e no Arquivo Nacional.
Desaparecidos políticos foram sepultados nos cemitérios de Perus e Vila Formosa em São Paulo,
de forma totalmente ilegal e clandestina, com a participação do IML, do Dops e da prefeitura.
Responsabilidades -
A ação destaca a participação de autoridades civis na repressão aos dissidentes políticos da
ditadura em São Paulo, principalmente da Polícia Civil.
O Dops foi identificado como um órgão estadual que atuava subordinado ao Exército Brasileiro,
após a criação dos Doi-Codi, em 1970.
Nesse departamento, dirigido por Tuma, eram formalizadas as prisões feitas ilegalmente pelo
Exército e abertos inquéritos policiais.
No Dops ocorriam novos interrogatórios, “em regra sob tortura”.
Há registros de que pelo menos 36 presos no Doi passaram pelo Dops e há documentos que
mostram que Tuma tinha conhecimento de várias mortes ocorridas sob a tutela de policiais do
Dops, mas não a comunicou a familiares dos mortos, caso, por exemplo, de Flávio Molina,
morto em 1971.
O legista Harry Shibata, por sua vez, assinou inúmeros laudos necroscópicos, atestando
falsamente causa mortis incompatíveis com os reais motivos dos óbitos de inúmeros militantes
políticos, ignorando, muitas vezes, lesões de tortura, casos, por exemplo, de Vladimir
Herzog e Sônia Angel Jones.
No caso de Sônia, seus seios foram arrancados, mas o legista não anotou isso no atestado de óbito.
A maioria dos laudos de Shibata era feita no nome de guerra dos militantes, apesar de o aparato
estatal conhecer suas reais identidades.
O legista chegou a ter o registro de médico cassado pelo Conselho Federal de Medicina.
Paulo Maluf foi prefeito de São Paulo durante a fase mais grave da repressão.
Nomeado por influência direta do governo militar, ordenou a construção do cemitério de Perus,
projetado especialmente para indigentes e que tinha quadras marcadas especificamente para os
“terroristas”.
O projeto original do cemitério previa um crematório, mas a prefeitura desistiu após a empresa
contratada ter estranhado o plano, que não previa um hall para orações, por exemplo. A
prefeitura chegou a fazer gestões visando mudar a legislação para cremação, para dispensar a
autorização da família para o procedimento, possibilitando a cremação de indigentes, mas não
teve sucesso.
Sob a gestão de Colasuonno, o cemitério de Vila Formosa em 1975 foi reurbanizado,
destruindo a quadra de indigentes e “terroristas”, o que praticamente impossibilita qualquer
identificação de militantes naquele local.
Bueno, por sua vez, caiu em contradição diversas vezes na CPI e era o elo de ligação entre o
poder municipal e o IML.
Coveiros, sob sua ordem, tinham orientações específicas sobre como lidar com os corpos
especiais, como eram designados os “terroristas”.
União, estado, município -
Além de responsabilizar civilmente as pessoas físicas que contribuíram para o desaparecimento
forçado de dezenas de opositores do regime militar em Vila Formosa e Perus, o MPF pede
também que seja declarada a responsabilidade da União Federal, do Estado e do Município de
São Paulo perante a sociedade, pelas ocultações.
Além da declaração, o MPF pede que União, Estado e Município sejam obrigados a divulgar fatos
relativos à morte e à ocultação dos cadáveres das vítimas de desaparecimento em São Paulo. Os
dados seriam gravados em equipamentos públicos, permanentes, a serem instalados
nos cemitérios de Perus, Vila Formosa, no Instituto Médico Legal e nos locais das prisões ou
mortes.
Quanto à antiga sede do Doi-Codi, onde hoje está instalada o 36º DP (Paraíso), o
MPF pede a sua conversão em um espaço público de memória.
Lentidão na identificação -
Na segunda ação civil proposta hoje, o Ministério Público Federal pede a responsabilização das
pessoas físicas e jurídicas que contribuíram diretamente para que as ossadas de mortos e
desaparecidos políticos localizadas na vala comum e outros locais do cemitério de Perus
permanecessem sem identificação.
A ação tem pedido de liminar para que a União reestruture, em 60 dias, a Comissão Especial de
Mortos e Desaparecidos e a dote de orçamento, pessoal e de um Núcleo de Pesquisas e
Diligências e um laboratório para se responsabilizar pelo Banco de DNA de familiares iniciado
pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, e que contrate, em até 90 dias, um laboratório
especializado na realização de exames de DNA em ossos.
São demandados na ação a União, o estado de São Paulo, a Unicamp, a UFMG
Universidade Federal de Minas Gerais,
a Universidade de São Paulo e mais cinco pessoas, a maioria legistas, sob a responsabilidade
dos quais estiveram sob análise as ossadas de Perus ou material genético dos familiares das
vítimas para confrontação:
Fortunato Badan Palhares (Unicamp),
Vânia Aparecida Prado (UFMG),
Daniel Romero Muñoz (IML/Instituto Oscar Freire - USP) e
Celso Perioli e Norma Bonaccorso (Polícia Científica de São Paulo).
As universidades e os profissionais processados negligenciaram com os
compromissos assumidos, gerando enorme atraso nas identificações.
Em alguns casos a ação aponta indícios de condutas intencionais para prejudicar os serviços.
As ossadas foram exumadas da vala comum do cemitério de Perus em 1990.
Os trabalhos de reconhecimento foram assumidos pela Unicamp e Badan Palhares, que, após
sucesso nas primeiras identificações, abandonou o serviço.
A Unicamp trabalhou com a
UFMG (professora Vania Prado)
para realizar exames de DNA.
Entretanto, também na UFMG houve descaso, não se chegando a nenhum
resultado importante.
Em 1999 o MPF interviu nos trabalhos e conseguiu que a Secretaria da Segurança Pública do
Estado de São Paulo assumisse a responsabilidade pela continuidade. Foi designado Daniel
Muñoz, do IML e professor da USP, para o trabalho. Os restos mortais foram trazidos da
Unicamp. Não houve, porém, sucesso no trabalho e nenhum relatório conclusivo foi
emitido.
O MPF entende que Muñoz descumpriu seus deveres e atrasou os trabalhos. Servidores da
Polícia Científica de São Paulo (Celso Perioli e Norma Bonaccorso) respondem na ação pela
quebra da responsabilidade de realizar exames de DNA nas ossadas. Esses profissionais se
contradisseram perante o MPF e as famílias dos desaparecidos, afirmando inicialmente que
dispunham da tecnologia para assumir a realização dos exames e, posteriormente, informando
que não poderiam realizá-lo. Essa postura atrasou em diversos anos a identificação de
algumas ossadas.Para o MPF, a Justiça Federal deve declarar que esses profissionais são
responsáveis pessoalmente pela não-conclusão dos trabalhos de identificação da ossada de Perus,
especialmente pela demora na identificação dos restos mortais de Flávio Carvalho Molina e
Luiz José da Cunha.
Os cinco, avalia o MPF, devem ser condenados a indenizar a sociedade, na medida de suas
responsabilidades em até 5% de seu patrimônio, ou a prestarem serviços não-remunerados em
instituições de promoção dos direitos humanos.
Direito à memória e à verdade -
As novas ações foram propostas pela procuradora da República Eugênia Augusta Gonzaga
Fávero, atual responsável pelo Inquérito Civil Público 06/99, aberto para apurar a demora na
identificação das vítimas da ditadura enterradas no cemitério de Perus, e pelo procurador
regional da República Marlon Alberto Weichert, que abriu o inquérito, a partir de
uma representação do grupo Tortura Nunca Mais.
Também assinam a ação o procurador regional dos Direitos do Cidadão Jefferson Aparecido Dias
e a procuradora da República Adriana da Silva Fernandes.
Foi no âmbito do inquérito civil público que o MPF/SP pautou sua atuação em busca do direito à
memória e à verdade sobre os fatos ocorridos na ditadura militar e ajuizou, em maio de 2008,
ação de responsabilização contra os ex-comandantes do Doi-Codi, o maior aparato da repressão
no estado de São Paulo, Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Maciel.
O processo do Doi teve a tramitação suspensa até o julgamento de uma ação proposta pela OAB
no Supremo Tribunal Federal contestando a constitucionalidade da lei brasileira de Anistia, de
1979, usada como argumento na Justiça para travar iniciativas em busca da apuração da
verdade em relação ao período.
Tribunais superiores da Argentina, Chile e Peru, acatando decisões de cortes internacionais,
consideraram leis semelhantes destes países como auto-anistias e o sistema judicial desses
países começou a processar casos de desaparecimentos forçados e assassinatos praticados pelas
Ditaduras contra opositores.
Em 2004, para tentar suprimir a ausência do Estado e da União, o MPF passou a comandar os
esforços para identificação, acionando a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, que
contratou laboratório que identificou os restos mortais de Flávio de Carvalho Molina (2005), Luiz
José da Cunha (2006) e de Miguel Sabat Nuet (2008), confrontando material genético dos ossos
com novas amostras de material genético de seus familiares.O MPF ainda tem procedimentos
visando à identificação de mais cinco militantes políticos mortos pela ditadura militar, em
cooperação com a Comissão de Mortos e Desaparecidos, da atual direção do Departamento de
Antropologia do IML e do Departamento de Cemitérios do Município de São Paulo.Eugênia e
Weichert atuam com exclusividade na área cível. As implicações criminais dos fatos tratados
nas ações civis já ajuizadas dependem, ainda, de iniciativas da área penal do Ministério Público
Federal.Weichert e Eugênia defendem que o Brasil não precisa modificar a Lei da Anistia para
punir os crimes cometidos por agentes da ditadura militar, pois, entre outros motivos, tais ilícitos
são crimes contra a humanidade. Para ambos, os instrumentos jurídicos disponíveis hoje são
suficientes, uma vez que os crimes de tortura, morte e sequestro cometidos por agentes do
Estado não foram anistiados, mas apenas os crimes de natureza política.
A ação do MPF em busca da memória e a verdade não se concentra apenas em São Paulo.
No Distrito Federal tramita ação, com atuação do MPF/DF e do MPF/PA, para identificar
guerrilheiros e moradores da região do Araguaia, mortos na ofensiva do governo para
exterminar a guerrilha, na década de 70.
No Rio Grande do Sul, o MPF abriu inquérito civil público para que sejam apuradas as reais
circunstâncias da morte do presidente João Goulart, na Argentina, em 1976.
Assessoria de Comunicação Procuradoria da República em São Paulo
11-3269-5068
ascom@prsp.mpf.gov.brwww.twitter.com/mpf_sp
26/11/2009 13h46
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